Há muitos meses que a angústia era imensa.
Os
cortes nos salários de ambos tinham dado uma machadada definitiva na
tranquilidade dos seus dias. Por mais contas que fizessem, o dinheiro
não chegava para cumprir com tudo - antes já era à justa, mas
conseguiam, mesmo com sacrifícios. Além dos cortes no rendimento, os
impostos tinham aumentado e tudo se complicara. Mesmo vendendo o carro
(ainda por cima já antigo e com pouco valor) já não havia saída. Nenhum
deles conseguia dormir há mais de 6 meses - pensavam enganar-se
mutuamente fingindo repousar, mas os olhos de ambos fixavam-se no escuro
do quarto e não conseguiam fechar-se. Choravam sem fazer barulho algum
e, de manhã, evitavam fitar-se olhos nos olhos. Ambos andavam a tomar
calmantes que o médico receitara, mas remédio algum conseguia sossegar
aquele demónio a roer-lhes a alma.
Temiam
a vergonha, eles que sempre tinham tido uma vida normal. Não eram
ricos, nem nunca ansiaram ser - mas tinham uma vida feliz, mesmo quando
era mais complicada, sempre se arranjara uma forma de ultrapassar. Mas
agora tudo ruíra...
Trabalhando
para o Estado eram "apontados" como mera "despesa", por mais esforço e
brio que tivessem no seu desempenho nada lhes era reconhecido, tinham-se
transformado em "objectos" descartáveis e até o seu sustento lhes fora
"confiscado" sem apelo nem agravo. "Sagrados", só os contratos com a
banca privada. "Sagrados", só os compromissos com os "mercados". Os
contratos e compromissos com quem trabalhava tinham-se tornado letra
morta, papel de jornal velho, nada. Tudo o que era verdade passara a ser
mentira e vice versa. Os direitos eram agora "regalias" a abater. As
regras eram agora "empecilhos ao desenvolvimento". Estavam presos a
tarefas mal pagas e desprestigiadas. Estavam presos a compromissos que
lhes tinham possibilitado ter um mínimo de conforto, porque não tendo
nascido em berço de ouro tudo o que possuíam viera do seu esforço, do
seu trabalho.
A
casa deixara de ser um refúgio – transformara-se num mausoléu de
ansiedade e medo. Era indiferente se amanhecia com sol ou com chuva -
mal acordavam só conseguiam pensar em contas de somar e diminuir, em
compromissos com data ultrapassada, em cartas de bancos, em despesas, em
dívidas, em problemas.
Um
dia, sem uma palavra, os seus olhos finalmente cruzaram-se no quarto,
ao final do dia. Não era preciso acrescentar mais nada. Ela viu o jovem
com quem casara, alegre, optimista, ambicioso, trabalhador - ali
transformado num velho precoce, cheio de angústias sem sossego. Ele viu a
adolescente com quem sempre namorara, casara, amara e vivera uma vida
inteira - ali transfigurada numa mulher triste, sofredora, amarga. Sem
uma palavra ambos entenderam que jamais teriam paz, jamais conseguiriam
enfrentar a censura alheia, jamais conseguiriam recuperar o sono
tranquilo e a simples alegria de despertar tranquilamente.
Fecharam
a porta de casa à chave. Fecharam a porta do quarto devagar. Amaram-se
pela última vez como da primeira. Tomaram todos os comprimidos que o
médico lhes dera para acalmar a fera interior. E partiram - para
sempre.
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