Rodrigo acelerava em direcção ao
ministério, a manhã fria e alguns minutos de atraso provocariam mossa no
saldo de horas, o sistema biométrico da assiduidade a denunciar, irritante.
Licenciado em Relações Internacionais, o pai arranjara uma cunha no Ministério da Agricultura, onde
o serviço não apertava, ocioso grande parte do dia,
tudo afinal decidido em Bruxelas. Nas muitas horas vagas, jogava Farmville, a
única quinta onde lidaria com porcos e vacas sem sequer ver agricultores.
Naquela manhã, para variar, havia que
fazer um relatório para o ministro, no Parlamento esgrimia-se o argumento das
quotas, litros de leite desperdiçados aos milhares para cumprimento da
PAC. Um escândalo, gritava teatral um deputado da oposição, que nunca vira uma
vaca mas a quem patrióticas preocupações motivavam tiradas shakespearianas no
hemiciclo, sublinhadas pelos muito bem!
dos correlegionários ensaiados.
Maçado, Rodrigo, lá colidiu as
informações solicitadas, estaria ocupado, ao menos. Com sorte escapara ao corte
no vencimento, aumentado 10% em Novembro para agora tirarem 4%, o director-geral
fora colega do pai no Colégio Militar e amigo. Imprimindo o árido relatório
cheio de barras com as explorações e gráficos do leite, suspirava por um
lugar onde pudesse fazer outras coisas e viver o perfume da civilização, longe
daquele sonolento gabinete, onde o café mais próximo vendia chamuças oleosas e
bolos de arroz com quinze dias.
O telefone tocou entretanto. O
ministro chamava para um briefing, era preciso ensaiar o discurso,
colocar um ar competente e de domínio dos dossiês, na intervenção da tarde. Os
números ajudavam a oposição e havia que dourar a pílula. A ver se não demorava,
marcara uma massagem no Holmes Place às seis, e queria despachar a
questão das vacas. Aproveitando o momento, Rodrigo, zurziu na má-fé da
oposição, ingrata, que não reconhecia o árido trabalho em prol dos
agricultores que ali se produzia para com denodo salvar a pecuária nacional.
Sobre as quotas do leite aventou uma ideia:
-Senhor ministro, há hipótese de darmos
uma interpretação diferente aos números da campanha do leite…
-Sim?...Diga diga, Rodrigo, sou todo
ouvidos.
-É assim: Bruxelas fixou uma quota de
4 milhões de litros para a campanha deste ano, e os produtores durante a
campanha obtiveram 5,5 milhões não é? -foi avançando, nunca vira uma vasilha de leite, mas os
números não haviam de mentir.
-Sim, e pelas regras da PAC, temos de
eliminar do circuito esse leite, não pode ser comercializado, senão
pagam-se pesadas multas.
Rodrigo, já iniciado em manobras
políticas na secção do partido em Algés, gizou um plano:
-Sugeria uma coisa: por um lado,
rectificar as estatísticas, anunciando-se que não era em litros de leite, mas em
número de recipientes que os números estavam a ser contabilizados, e notificar
o EUROSTAT. Aliás, temos lá o Bernardo, que é do partido, pode dar uma
ajuda; e por outro, atirar a responsabilidade do descontrolo para o governo
regional dos Açores. Os tipos não se puseram de fora na questão dos impostos?
Pois agora chuta-se a bola para o lado deles, que se amanhem. E no Parlamento o
senhor ministro pode ainda contra-atacar abrindo uma linha de crédito para os
agricultores do oeste, e assim calar os detractores…
O ministro rejubilou, boa cartada:
-Excelente, Rodrigo, ainda bem que o
tenho cá no ministério!. Olga, prepare já um despacho anunciando uma linha de
crédito, o Rodrigo dita o que for preciso. Depois, daqui a dois meses
suprime-se e alega-se que a situação exige mais sacrifícios ao país…
Rodrigo sorriu, triunfante. Como é
que ainda não estava em Paris a servir num gabinete da embaixada?. Durante a
tarde, o ministro lá colocou um ar responsável, sem horas de sono em prol da
pecuária nacional, e o debate foi levado para os apoios e a linha de crédito,
aplaudida de pé pela bancada do Governo.
Oito dias depois, arrumava Rodrigo o
carro no parque do ministério quando o telemóvel tocou. O ministro queria
falar-lhe, a voz séria sugeria urgência. Pensou que a história do leite se
calhar azedara e com a calma possível acelerou o passo. No gabinete, o
ministro, bem-disposto, saudou-o cordialmente, oferecendo café, e deu-lhe a
notícia: o Governo reconhecia a extraordinária preparação de Rodrigo em
assuntos agrícolas e os seus conhecimentos do mundo da lavoura, e
nomeava-o Secretário de Estado da Agricultura, a posse seria dois dias
depois. Depois do pasmo, rejubilou, recebendo um abraço do ministro e sendo à
tarde muito saudado pelos amigos no Pavilhão Chinês. Afinal,
arengou, saboreando um martini, a agricultura era o futuro do país,
ecológica e sustentável, com espírito de missão cumpriria o lugar, estoicamente
suportando as maçadoras deslocações a Bruxelas para as reuniões
quinzenais. Enquanto os restaurantes da Grand Place mantivessem o
cardápio de vinho e queijos, a tudo se sacrificaria em prol do país e do mundo
rural.
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