Profissional da área da documentação técnico-científica , Filomena Marona Beja estreou-se no romance com As Cidadãs (1998),
livro que transporta o/a leitor/a para a Lisboa do início do século XX e
cuja reedição, em 2009, coincidiu com as comemorações do centenário da
implantação da República.
A autora publicou também Betânia (2000), A Sopa (2004) — com o qual ganhou o Grande Prémio de Literatura DST em 2006—, A Duração dos Crepúsculos (2006), A Cova do Lagarto (2007) — galardoado com o Grande Prémio de Romance e Novela APL — e Bute Daí Zé (2010).
Em 2011, Filomena Marona Beja editou o seu primeiro livro de contos, Histórias Vindas a Conto e este ano O Eléctrico 16. Para o Sintra Deambulada escreveu o conto que ora publicamos.
Ainda não era dia.
Ela
meio acordada, meio a dormir.
E
já lhe batia na lembrança a conversa da véspera, vinda do quarto dos tios:
“A
Ana Vanessa telefonou”. “Telefonou?! Há novidade?”. “Lá anda... Combinou com o
marido virem cá, em Dezembro”. “Pelo Natal?...”. “Não disse”.
Ouvira?
Ou
sonhara, em vez de ouvir?
Agora,
era o portão a abrir. Os gonzos acusando ferrugem. E o tio a chamar:
-
Carril! Anda cá... toma, Carril, toma.
O
cão.
Depois,
o arrastar das bilhas. Estava na hora de ir ao encontro do camião da Lacto-Cooperativa.
A
motorizada arrancou à segunda tentativa. Foi-se afastando. Consigo as
indecisões do motor, o protesto do escape.
Ao
tio e à tia, parecera uma boa ideia comprar aquela motorizada.
“Nem
que seja para desenrascar uma saca de batatas a algum freguês que telefone para
aí.”
“Para
se chegar à Vila, quando as carreiras estão em greve...”
“...ir
tratar de alguma coisa que apareça à última da hora.”
“Para
a rapariga não faltar ao liceu...”
“...não
chegar atrasada.”
O
casal onde moravam ficava numa baixa. Olhando à volta, só se via a serra.
-
Mas diga-se a verdade: a Vila fica perto.
Ela
punha-se lá em menos de um quarto de hora. Indo a pé, pela beira da estrada.
Rente aos troncos dos plátanos, olhando uma e outra vez para as copas. O
rebentar do verde. A sombra. O cair das folhas.
Mas
dissesse-se também que, naquela época, toda a gente comprava motorizadas. E não
só os da Várzea. Também os de Cabriz, Nafarros, Carrascal e de outros sítios.
Se
uns compravam, porque haveriam os mais de ficar em branco?
Era
um pequeno sinal a elevá-los da míngua. Talvez do atraso.
Já
ninguém queria burros.
Comiam
a toda a hora. Mesmo que só de vez em quando carregassem com umas abóboras para
o mercado da Estefânia.
“E
depois, a gente não vai pôr a rapariga a caminho do liceu em cima de um burro!”
Nem
seria assim que ela ganharia tempo, se já fosse atrasada.
“Continue
a estudar, a aproveitar...”
E
talvez a mandassem tirar a carta.
“
Compra-se uma furgonete para as nossas voltas...”
Sim,
uma 4L.
“...e
sempre que ela vir atrapalhada, para apanhar a primeira aula, pode levá-la.”
Mas
ainda faltava idade à sobrinha para poder ter carta.
E
as furgonetes não eram para todos.
-
Não era eu a rapariga que os meus tios não queriam que faltasse à escola.
Era...
A
Ana Vanessa.
-...a
minha mãe.
A
mãe também crescera ali no casal da Várzea, com os tios.
Razões?
Ninguém
as evocava. Aludia-se, quando muito, a voltas do destino que a teriam deixado
ao desamparo.
-
Se nós lhe tivéssemos faltado...
Mas
tal não acontecera.
-
Cá a criámos.
-
À nossa maneira, já se vê!
Fora
para a escola, depois para o liceu. Pusera-se bonita. Namoradeira. “Aí, o meu
pai entrou em cena.”
-
Foi um dos nossos desgostos... – lembrava a tia.
Outros?
O
que lá ia, lá ia. Mas ficara-lhes uma mágoa:
-
Ela estar lá para longe...
-...e
não aqui, com a gente.
Arranjara
trabalho nos navios de uma empresa com sede em Bremenhaven.
-
Foi para a Alemanha, era eu muito pequena.
O
cheiro do café. Da mistura de cevada e chicória a fazer de café.
A
tia a cirandar na cozinha. A migar pão para uma tigela, a ir buscar o açúcar. E
o relógio da casa de jantar a bater sete horas.
O
Carril ladrava, lá fora.
As
torneiras da casa de banho.
O
vestir, o calçar. “Levo botas? Não levo?.. Parece que não vai chover.”
-
Vê se não molhas os pés, se não te constipas – recomendava a tia.
Recomendaria
todas as manhãs. Até ao último dia de aulas.
Uma
fatia de pão, outra de marmelada. Havia também doce de tomate.
-
E mais leite?... não queres?
-
Não tia, obrigada.
O
barulho da motorizada e os gonzos do portão noticiaram que o tio estava de
volta.
A
tigela com as sopas já em cima da mesa. À espera.
-
Senta-te e come – disse a tia.
Ele
sentou-se, bocejou, afirmou que não tinha fome. E começou a comer.
Lá
dentro, na casa de jantar, o relógio tornou a bater horas.
O
casaco. A mochila.
-
Até logo...
-
Não te atrases.
A
berma da estrada.
Carros
de faróis acesos vindos da bruma, que havia para o lado do mar. Rapazes de
bicicleta.
Nem
sinal da camioneta. Era capaz de ainda estar para lá do Rodízio. Ou já viria à
curva do Vinagre?
Encostou-se
ao tronco do plátano. Esperaria.
O
eléctrico também por ali passava. Mas só de Verão.
Olhou
as folhas secas amontoadas sobre os carris. Lembrou-se do cão.
Fora
naquele sítio que o encontrara, fazia um ano. Cachorro abandonado.
E
desorientado, pelo farejar. Pelo ir e vir, acabando sempre de encontro à árvore
a que ela se encostava.
-
Se fosse meu...
Como
lhe haveria de chamar?
-
Carril!...
Ele
aproximara-se. Consentiu que lhe pegasse, que voltasse com ele para o casal.
-
Deixem-no ficar connosco...
O
Brilhante estava tão velho que já nem
ladrava.
-...e
este é tão querido!
Ficou.
Tornou-se num belo cão, e num bom guarda. Raça?
-
Bem...
Talvez
labrador.
-
Talvez. Mas muito amulatado de rafeiro.
“Amulatado”.
Ficou ressentida com a tia por ela ter dito aquilo.
A
camioneta sem aparecer.
Ia
ter teste de inglês, e gorava-se-lhe a intenção de chegar antes da hora.
A
professora era nova na escola. Só a conhecera no recomeço das aulas. “Chamo-me
Fátima Lima e sou a vossa professora”, apresentara-se.
Não
queria que lhe chamassem “Sotôra”. “Miss”, ou “Miss Fátima” estava bem.
Gostara
logo dela.
E
para os alunos dos últimos anos da escola, Miss Fátima era a Fraulein Lima.
Professora de alemão.
Assim,
no fim de uma aula, tomou coragem e apresentou-lhe uma folha em que estava escrito:
Der Vater
Die Eltern
Der Elternlieb.
Copiara
de um dicionário e queria saber com se pronunciava.
-
Tens os teus pais na Alemanha?
-
A minha mãe... e ela casou-se com um alemão.
Ana
Vanessa e Horst.
Ela
hospedeira a bordo do Glückschiff. Ele
de meia idade, e um lugar de chefia na companhia proprietária do navio.
O
casamento fora em Maio.
-
Vêm cá, em Dezembro, para me visitar.
Chegariam
nas vésperas do Natal. Talvez viessem de automóvel, talvez de avião. Trariam
duas, três malas, cheias de agasalhos e de presentes.
“Sabia
que era isto que tu querias!”, diria a mãe. Embrulho a embrulho, quando ela os
abrisse.
E
Horst: “Gostaste?... A sério?! Anda cá dar-me um beijo”.
Ficariam
uns dias.
Ana
Vanessa tornaria aos plátanos da estrada. Indicaria ao marido o tronco a que se
encostava, “...enquanto não vinha a carreira para o liceu”.
“Eu
também me encosto aí a esse tronco, quando estou à espera da camioneta”,
revelaria ela.
E
Horst, com um grande sorriso: “Não me digas!”
Passeariam
os três pela serra. Iriam até ao mar.
Seria
assim. “Não faria sentido não ser”.
Ajudaria
a tia a limpar a casa. Dar brilho aos vidros, pôr cera no chão.
Ela
própria engalanaria sala, quartos, cozinha. Começaria mesmo por uma tabuleta,
do lado de fora do portão:
FELIZ NATAL
EIN GLÜCKLICH WEIHNACHTS
Armaria
o pinheiro na casa de jantar. E tão bem o enfeitaria que Horst haveria de
perguntar: “Quem cuidou deste abeto?”
Por
isso, queria chegar cedo à escola e perguntar a Miss Fátima como se
pronunciava:
Der Tannebaum.
Vinha
lá uma camioneta.
“Será
desta? Não há um dia que cumpra o horário!”
-
Vem aí a Ana! – anunciou o tio.
- A
Ana!... – repetiu a tia.
O Carril às voltas pelo pátio, dando ao
rabo.
O
Natal, porém, fora uns dias antes.
Passado
com os tios. Não faltando os fritos de abóbora nem uma perna de peru assada no
forno.
De
presente, recebera um gorro em lã.
Agora,
a mãe abraçava o tio. A tia.
Horst
empurrava uma mala de rodas, e apertava as mãos.
Faziam
um cruzeiro. Ana Vanessa com estatuto de convidada. Não de hospedeira.
O
navio tocara Lisboa. Os passageiros desembarcaram para conhecer a cidade.
-
E nós viemos desejar-vos um bom Ano Novo... e deixar umas lembranças.
Não
ficavam para o dia seguinte? Não almoçavam?
-
Ai!... desta vez não.
O
navio zarpava, à noite, para o Funchal.
-
E o Horst ainda quer ir, esta tarde, ao Cabo da Roca...
Levantar
o diploma de lá ter estado: Na ponta mais
ocidental da Europa.
-
E tu!...
Chegara
a sua vez.
Os
beijos de Ana Vanessa. O que queria saber e o que já soubera ao telefone. Ao
computador.
-
Bravo pelas notas que conseguiste, neste período!...
Horst
aproximou-se. Olhou-a sem lhe tocar. Voltou a cabeça e pronunciou uma frase de
que ela só entendeu: ”Vater”.
Encaminhou-se
para o táxi que ficara ao portão.
Ela
no mesmo sítio. O Carril roçando-lhe
as pernas.
As
despedidas.
Acenos.
Mais beijos da mãe, e a pergunta da tia:
-
O que é que o teu marido disse da miúda?
-
Que... que herdou a cor e a carapinha do pai. Julgava que ela não era tão afro.
Os
primeiros dias de Janeiro.
Faróis
de carros a caminho da Vila. Ela encostada ao tronco do plátano.
Esperava
a camioneta que vinha atrasada.
Já
era assim, no tempo de liceu de Ana Vanessa.
Sintra / Outubro, 2013.
Sem comentários:
Enviar um comentário