Fundada em 1545, a Santa Casa da Misericórdia de
Sintra assumiu ab initio um papel
decisivo no auxílio aos mais desfavorecidos do concelho, destacando-se a sua intervenção
junto dos enfermos pobres. No entanto, outros grupos da sociedade foram também alvo
de preocupação, a exemplo das órfãs, dos presidiários e, mesmo, dos expostos.
Nas próximas linhas darei especial atenção a este último grupo, isto é, ao das
crianças enjeitadas abandonadas nas rodas dos expostos.[1]
No caso da Misericórdia de Lisboa
sabemos que, no ano de 1543, houve uma recomendação no sentido de a instituição
tomar conta dos enjeitados a cargo do Hospital Real de Todos os Santos. Por
outro lado, em relação ao concelho de Sintra, é também possível ter uma ideia
do que foram os primeiros passos no apoio às crianças enjeitadas. Há, de resto,
um documento de arquivo que faz alguma luz sobre essa realidade. Refiro-me a
uma carta do rei D. Sebastião, datada de 7 de dezembro de 1574[2].
Trata-se, em bom rigor histórico, de uma sentença a favor da Misericórdia de
Sintra e contra o Conselho Municipal da vila, sendo determinado que à Confraria
não incumbia a criação das crianças enjeitadas.[3] Percebe-se,
no entanto, da leitura do citado documento, que esse procedimento era comum (embora
voluntário) pelo menos desde os tempos de Rui Gonçalves da Penhoranda (provedor,
por cinco vezes, entre os anos de 1552 e 1573).
Não obstante as rodas dos expostos se
generalizarem a partir de finais do século XV, designadamente com o surgimento
das Irmandades da Misericórdia, a verdade é que a sua oficialização só acontece
na segunda metade do século XVIII, precisamente em 24 de maio de 1783 (reinado
de D. Maria I). É então determinado que em todas as cidades e vilas do Reino haveria
casa da roda, situada em lugar discreto e tendo sempre disponível uma rodeira
para receber os expostos.[4]
É útil referir que, até ao início
do século XIX, as formas mais ou menos institucionalizadas de assistência aos
enjeitados não encerram uma preocupação central com a criança. Com efeito, é ao
longo da referida centúria que a criança se torna o alvo prioritário de uma
ação filantrópica. Por exemplo, o movimento de beneficência pública que se
estende de França a Portugal tem as suas consequências mais visíveis a partir
de 1834, ano em que se assiste à criação da Sociedade da Instrução Primária e
da Sociedade de Beneficência para as Casas de Asilo da Primeira Infância; em
causa, a ideia do desenvolvimento da criança evitando desvios (proteção).
Regressando à determinação de D.
Maria I, cabe dizer que a mesma foi reafirmada em 5 de junho de 1800, através
de um ofício assinado pelo então Intendente-Geral de Polícia, Diogo Inácio de
Pina Manique. O documento em questão acrescentava que as casas para os expostos
deviam situar-se em lugar bem ventilado e sadio, entre outras orientações.[5]
Não há informação precisa sobre a
data do estabelecimento oficial da roda dos expostos da Santa Casa da
Misericórdia de Sintra.[6]
Porém, é possível balizar a sua criação entre os citados documentos emanados em
1783 e 1800 e o primeiro livro de registo da entrada dos expostos que remanesce
no Arquivo Histórico da Misericórdia (iniciado em 1816). Talvez por prática que
vinha de períodos mais recuados, entre março de 1816 e maio de 1819, todos os
expostos entregues na roda da Misericórdia de Sintra são conduzidos ao Hospital
de Lisboa.[7] A
partir do último mês e ano referidos, o Arquivo da Misericórdia possui alguns
registos da entrada e despesa com os expostos, embora seja difícil estabelecer
séries com continuidade, devido a várias lacunas.[8]
O funcionamento das casas dos
expostos obedecia a procedimentos uniformizados. O modo como o exposto era entregue
(de forma anónima) deixa transparecer uma estadia curta ou transitória e nunca
definitiva. A aposição à criança de objetos (laços, medalhas, moedas, brincos,
etc.) ou de documentos é algo mais do que um sinal; trata-se, de forma mais
exata, de uma marca, significando que a criança tem uma origem, alguém que dela
não se pode ocupar, mas que a identifica como Ser.[9]
Apesar de ser muito importante o objeto identificador da criança, sucede que,
por vezes, os vários elementos descritos nos documentos (na sua maioria
referentes à indumentária) serviam como verdadeiros sinais. Atente-se na
transcrição do seguinte bilhete:
É a censura moral e social imposta
à manutenção de crianças ilegítimas numa família ou, mesmo, as condições de
miséria que tornam habitual a prática acima transcrita; possibilitava-se assim a
proteção do anonimato a alguém que optava por um “agente” intermediário para
sustentar tal encargo.[11]
Com a entrega da criança na roda
iniciava-se um novo ciclo, sendo que o objetivo era o de colocar rapidamente o
exposto aos cuidados de uma ama. Porém, como muitas crianças não estavam
batizadas, era necessário ministrar esse sacramento. No caso das crianças
expostas na roda da Misericórdia de Sintra, o batismo tinha lugar na Igreja de
S. Martinho. Era, de resto, habitual a adoção do nome do santo do dia da
exposição.
No período que mediava entre a
receção do exposto e a entrega à ama, era à rodeira que incumbia a alimentação
da criança. As más condições de higiene, as doenças infeciosas (varíola,
sarampo…) e as próprias circunstâncias em que era efetuado o transporte faziam
com que um elevado número de expostos falecesse nos primeiros dias ou meses de
vida. Veja-se, por exemplo, que entre 5 de novembro de 1835 e 8 de julho de
1841 entraram na roda da Misericórdia 125 crianças (73 rapazes e 52 raparigas),
sendo que desse total viriam a falecer 37.[12]
Por outro lado, tenhamos em conta
que a alimentação da criança exposta provinha de uma estranha, privando-a do
afeto e da identificação física com a mãe natural. Era, pois, das amas que
dependia em larga medida a sobrevivência dos expostos, não sendo de estranhar
que se exigisse que tal função fosse desempenhada por mulheres jovens, sãs e de
bons costumes. Sabe-se também, no caso da roda da Misericórdia de Sintra, que
poucas amas eram internas. De facto, conforme se pode constatar pela leitura do
Documento II, havia um conjunto significativo de amas que estava disseminado
por todo o concelho.
Localidade / Residência
|
N.º de Amas
|
Linhó
|
3
|
Ranholas
|
1
|
Almoçageme
|
1
|
Sabugo
|
2
|
S. João das Lampas
|
1
|
Montelavar
|
4
|
Bolelas
|
1
|
Peroleite
|
1
|
Cabeço da Moucheira
|
1
|
Penedo
|
8
|
Seixal
|
1
|
Carrascal
|
1
|
Mercês
|
1
|
A-do-Longo
|
1
|
Moucheira
|
1
|
Outeiro da Moucheira
|
1
|
Alvarinhos
|
1
|
Sintra
|
2
|
Mem-Martins
|
1
|
A-dos-Francos
|
1
|
Serradas
|
1
|
Eugaria
|
3
|
Algueirão
|
1
|
Amoreira
|
1
|
Ulgueira
|
1
|
Boca da Mata
|
1
|
Nafarros
|
1
|
Morelinho
|
1
|
Cheleiros dos
Serrados
|
1
|
S. Pedro
|
1
|
Azenhas do Mar
|
1
|
Cabrela
|
1
|
S. João das Lampas?
|
1
|
“31 de maio”
|
1
|
Documento II- Número de amas por localidade com expostos (até à idade de 7 anos) a cargo da Misericórdia de Sintra, entre 1
de julho de 1840 e 30 de Junho de 1841 (Arquivo Histórico da Misericórdia de
Sintra, Livro para
os os Assentos e Contabilidades dos Expostos,
1830-1850).
As amas, no entanto, eram alvo de
controlo (visitas anuais), sendo também exigido que não tivessem mais de um
exposto para aleitar (disposição que, por vezes, acabava por não ser cumprida
na íntegra).[13]
Até aos sete anos de idade os
expostos estavam à guarda das amas, as quais auferiam um vencimento mensal,
além de uma quantia que lhes era entregue anualmente (destinada ao enxoval das
crianças a seu cargo). Uma vez atingida a referida idade, antevia-se um percurso
algo incerto. De facto, as opções podiam passar pela recuperação do exposto,
pela adoção ou, mesmo, pela possibilidade de a criança continuar com a ama, se
esta assim o entendesse. Porém, esta última hipótese era muito remota, já que,
por via de regra, as amas deixavam de receber gratificação.
Não se verificando qualquer uma das
situações acima descritas, os expostos ficavam sob tutela do juiz dos órfãos,
sendo emancipados aos vinte anos. Era comum os rapazes trabalharem como “moços”
até completarem a idade de doze anos, recebendo como contrapartida a alimentação,
o vestuário e o calçado. A partir de então, era estabelecido um pagamento (soldada)
e iniciavam frequentemente o aprendizado de um ofício mecânico. Por outro lado,
as raparigas acabavam por ficar praticamente limitadas a uma saída, ou seja, trabalhar
como criadas em casas particulares.
Interessa dizer que a Misericórdia
de Sintra concedeu um importante apoio a alguns expostos maiores de sete anos
de idade que não foram recuperados pelas famílias (ou outrem), nem alvo de
adoção. Na verdade, a Mesa Administrativa da instituição atribuiu gratificações
a amas no sentido de continuarem a tratar dos expostos (findo, pois, o prazo
legalmente estabelecido para o seu cuidado), procurando, inclusive, orientá-los
mais tarde para uma atividade específica. Por exemplo, em relação a este último
aspeto, há notícia de três expostas de idades compreendidas entre os dez e os
catorze anos que, em julho de 1838, trabalhavam como criadas em casas
particulares situadas em Meleças. Neste caso específico, a Misericórdia tinha o
encargo de vestir as expostas até completarem os catorze anos, recebendo posteriormente
gratificação consoante o seu desempenho.[14]
De um estabelecimento formal ocorrido
entre os finais do século XVIII e os inícios da centúria seguinte, a roda dos
expostos da Misericórdia de Sintra conheceu maior atividade nas décadas de
1830-1840; nesse período, apresentou-se como uma estrutura local com alguma
capacidade de resposta.
No último livro de entrada dos
expostos existente no Arquivo da Misericórdia (datas extremas: 1855-1864), a
esmagadora maioria dos registos indica que as crianças foram conduzidas à
Misericórdia de Lisboa.
Em 27 de novembro de 1865, a Mesa
Administrativa da Misericórdia solicitou ao governador civil de Lisboa a
conservação da roda dos expostos.[15]
No entanto, tal pedido não impediu que, em 19 de novembro de 1866, ficasse
registado em acórdão da Mesa a extinção da roda por ordens superiores.[16]
[1] Expor, na linguagem da época, significava abandonar. A roda
consistia num mecanismo em forma de tambor ou portinhola giratória, embutido
numa parede, permitindo o anonimato de quem expunha uma criança.
[3] Desde o século XVI, com as
Ordenações Manuelinas, que os conselhos municipais tinham a obrigação de prover
a criação de órfãos e expostos.
[5] Cf. Carlos Andrade Teixeira,
“Apontamento para o Estudo da Casa dos Expostos de Cascais”, Arquivo de Cascais, n.º 5, 1984.
[6] A referência à roda dos expostos
da Santa Casa da Misericórdia tem um sentido abrangente, isto é, deve ser
entendida como a “roda de Sintra”. A primeira designação ficará a dever-se à
localização da roda (melhor dizendo, à casa dos expostos), e não apenas à
responsabilidade institucional. De facto, parece ser verosímil que a casa dos
expostos estava localizada no Hospital da Misericórdia, conforme registo de
1835 exarado a fl. 1 r. do Livro da
Entrada dos Expostos, n.º 17.
[7] Cf. Arquivo Histórico da Misericórdia
de Sintra, Livro que serve para o Assento
dos Expostos nesta Santa Casa, n.º 16, fls. 3 r. - 4 r.
[8] A documentação de arquivo
permite saber o movimento dos expostos entre 1816-1831, 1836-1841 e 1855-1864.
[13] O mencionado Livro para os Assentos e Contabilidades dos
Expostos, 1830-1850, deixa perceber que havia amas que tinham mais de um
exposto ao seu cuidado.
[14] Cf. Arquivo Histórico da
Misericórdia de Sintra, Livro para os Assentos
e Contabilidade dos Expostos, 1830-1850.
[15] Cf. Arquivo Histórico da
Misericórdia de Sintra, Livro 25 dos
Acórdãos da Misericórdia de Sintra, fl. 255 v.
[16] Cf. Ibidem, fl. 263 r. No ano de
1866 é também encerrada a roda dos expostos de Alenquer e, por Decreto de 21 de
novembro de 1867, são formalmente extintas todas as rodas e criados, em sua
substituição, hospícios. Todavia, a roda dos expostos da Misericórdia de Lisboa
mantém-se em funcionamento até 1870.
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