Chove
na mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta
da esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, velha sombra dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente. Como desolada
está a praia, apesar de Agosto, cinzenta como o espírito, náufragos de calção
circulam aflitos por miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de
tranquilizantes melodias.
Agosto.
É Inverno no país das flores, de vez foram os cravos furtados das armas, agora
apontadas a subjugados prisioneiros no país que já foi de Zeca. Volta Zeca,
volta de teu túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo culpado por
sonhar. O mar provoca, desafia a vencer, qual Gama, da nau catrineta, cavalgar
a onda, ousando, e logo um atávico apelo a desistir, vencido de si, temeroso.
Os amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório
entre o pesadelo e a ilusão. No leitor do carro, passo Kurt Weil, por onde o
caminho para o próximo whisky bar?…
Escrevo.
Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma?
Recomeçar, com novos cravos em cano agora apontado a nós? Brancos, desta vez
querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul,
és Sal, e tão longe de Portugal…
Ululantes
hordas de conformados patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen,
assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, e agora ameaçadoras,
promessa de castigos, cruéis e castradores, estivais armagedeões relampejados.
Que fazer para não despertar, para voltar ao filme onde todos são felizes, que
inveja. Ah, como é puro o cheiro límpido do iodo, apesar do verão avaro.
Caneta,
papel, umas linhas para a imortalidade esculpidas no areal, ao lado ujm trilho
de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, é Brel, é Portugal amarelo scotch em fundo,
albergue de errantes, trôpego de futuro e sem pedras de gelo. Vamos para
Alabama acolher-nos num whisky bar! Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a
caminho do café, e eu sóbrio ainda.
O
Chico emigrou, cansado de desesperar, emigrou não, globalizou-se, o Zé Luís
morre aos poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel
surpreendi ouvindo o Zeca e Doors, cinco aguardentes durou, no esconso da casa
do Gil, só pela madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.
No
quiosque, anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos,
invasores, cardíaco relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler
jornais. Aliás, deixar de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as
palavras, analfabetos, não descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos,
esboçamos adjectivos, talvez se salve o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o
limão que tira a piada à vida.
Deixou-me,
a Mafalda, cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool
redentor e concubino. Amigo certo, presenteou-me com uma poética cirrose,
maleita de intelectual, é o mínimo. Não morrerei de pijama, mas de fraque, não
se vai para o outro mundo de pijama, espero que no tal Céu haja Visa, parece
que não deixam levar dinheiro. De partida agora, posso pensar em novas
madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica
bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando faça um poema. Campa,
sim, quero uma campa, quero alistar-me no exército das cruzes, entre memoriais
de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para
frango ou Joana d'Arc.
Neste texto derradeiro registo silenciosos gritos e cúmplices cirroses servidas com caneta
de aparo. Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixinho uma canção de Brel,
pelo retrovisor vejo o Max no banco de trás, grande Max, já partiu, sete Outonos atrás, espera aí Max, vou a caminho!
É
cruel, a caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso o aparo mata,
invasiva arma contra as palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar
revoluções, gritar esperanças, borrar epitáfios, apunhalar palavras errantes em
confidenciais cadernos.
É
Sábado. Cristo morreu, Marx também, e não me sinto lá muito bem. São cruéis os
sábados, convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta, aninhado entre pregos de aço, mas ressuscitou num sábado, hora de Greenwich. Todos
os dias ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a mais um copo no bar. Esfíngico, o sol põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o CD
no carro repete o Brel em looping, Max, vou já!…. Eis-me poeta de
cirroses, servidas em copo alto, em vésperas da Libertação.
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