1970.Mais um Verão em
Colares, a escola acabara e as férias prometiam aventuras. Jorge juntava-se aos
amigos de Verão, a Lurdes, o Zé Tó, até o António, filho do Gaitinhas, o
jardineiro, vinha nesses dias brincar com os filhos dos senhores doutores,
jovens e ardentes nas diversões e partidas. Durante as manhãs, praia, o farnel
da velha Amélia, sandes e sumos, o panamá para o sol, delícias dos treze anos
num Portugal inocente e a preto e branco. À tarde, a traquina caça aos pardais
com visco ou fisga, e enguias no rio de Colares, observados pelos patos
grasnando nas margens.
Certo dia, irrequietos,
lembraram-se de fingir que se estavam a afogar no rio e escondidos deram em
gritar por socorro atrás do canavial, a simular um afogamento e pondo a tia
Teresa a correr direita ao rio, mais o Gaitinhas que podava as roseiras.
Chegados, logo se desfizeram em risadas, haviam caído na peta, a tia a arfar, a
pedir um copo de água, não ganhara para o susto, o Gaitinhas, ruborizado,
correu atrás do António com uma cana, para o espancar. Claro está que foram
cinco dias de castigo, sem ir à praia nem groselha, o traseiro vermelho de
merecidas palmadas, uma história para rir a bandeiras despregadas nos tempos
seguintes.
Vários anos passaram.
De novo a brisa vinda do oceano voltou a soprar sobre a velha casa, o elétrico
dolente estrada abaixo, a fazer a união do presente com o passado. No Verão de
2010, Jorge, engenheiro civil, casado e já pai, voltou à casa da sua
adolescência, o pai falecera e decidiram manter a casa para o fim-de-semana. Os
filhos, a Tininha e o Marcos, gostavam do sítio, e, como já antes os pais,
fizeram amizade com o filho do António, o Jaime, aluno no Colégio Militar e
orgulho do avô, o falecido Gaitinhas, alegres nos catorze anos de muito
computador e zapping. A várzea
permanecia igual, as mesmas casas português suave, burguesas, com alpendres e
trepadeiras, o mesmo penetrante cheiro a maresia e pinheiro manso trazido com a
brisa da tarde. As brincadeiras eram outras, nem piões nem cavalos de pau,
antes videojogos e auriculares, e passeios de bicicleta à Praia Grande ou ao
Angra, onde o pai, agora com cinquenta anos, se entretinha degustando uns camarões
ao fim da tarde com aquele branco que o Faísca bem sabia.
Um sábado de Agosto,
com churrasco em perspetiva para a noite, aventuraram-se num safari por um
pomar fora, o rio domado serpenteava até á foz e as ovelhas do João pastavam
sem pressas. Junto à margem, dois sapos saltitavam numa zona onde bogas
cruzavam o riacho, com o verdete das águas paradas deixando escapar um cheiro
nauseabundo. Tininha, surpresa com os sapos, aproximou-se, pôs um pé em falso
na terra mole e caiu à água, logo se afundando e sem pé, não sabia nadar. Jaime
lançou-se ao rio, mas a pequena batera com a cabeça numa pedra e estava
inanimada e à deriva. Marcos correu a chamar o pai, que meio sonolento cortava
a relva, sob o olhar atento do Boris,
o rafeiro de estimação.
-Pai,
venha depressa, a Tininha está a afogar-se! Caiu ao rio e não reage! -assustado,
na pressa, perdeu até o auricular.
-O
quê? De verdade? Deixa-te de brincadeiras, Marcos, que não se brinca com coisas
sérias! -repreendeu o pai, logo lembrado da história passada
consigo quarenta anos antes. Os miúdos são todos iguais, pensou, continuando a
regar.
-É
verdade, acredite! O Jaime até lhe está a fazer respiração boca a boca! –Marcos
reclamava por não ser levado a sério.
-O
quê? Isso é que não, nada de abusos! Onde é que estão esses dois? –aí reagiu, largando a mangueira e
inadvertidamente molhando o Boris,
que correu a esconder-se na casota.
-Venha
comigo ao Covão, depressa!
No local, Tininha,
ainda meio zonza e encharcada, estava já encostada a um carvalho, a mão do Jaime,
o salvador do dia, segurava a dela.
-Tininha!
Estás bem miúda? Por que é que não me disseste o que aconteceu á tua irmã,
Marcos, onde estás com a cabeça? -Jorge recordou a
imagem da tia Teresa e do Gaitinhas aflitos nesse mesmo local anos antes.
-Mas,
pai, acabei de te dizer! Ninguém me dá ouvidos, bolas! –refilou
amuado, dando um pontapé numa pedra.
Depois de seca e
retemperada, levou-a para casa, ao colo, o Jaime promovido a seu herói,
recuperada do susto, mas recordando o bafo ofegante e fresco dos lábios do
amigo, até que valera a pena apesar de tudo, quando a Mónica soubesse...
À noite, no caramanchão
iluminado por pirilampos, Jorge dando uma passa no cachimbo recordava a
brincadeira, essa sim malandreca, de anos atrás, ao longe e quebrando o silêncio,
os sapos coaxavam no riacho. Os anos haviam passado, mas o rio, silhueta de
fertilidade e força, continuava companheiro das renovadas estações de várias
vidas.
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