quinta-feira, 31 de outubro de 2013

No rio pulavam os sapos

FERNANDO MORAIS GOMES


1970.Mais um Verão em Colares, a escola acabara e as férias prometiam aventuras. Jorge juntava-se aos amigos de Verão, a Lurdes, o Zé Tó, até o António, filho do Gaitinhas, o jardineiro, vinha nesses dias brincar com os filhos dos senhores doutores, jovens e ardentes nas diversões e partidas. Durante as manhãs, praia, o farnel da velha Amélia, sandes e sumos, o panamá para o sol, delícias dos treze anos num Portugal inocente e a preto e branco. À tarde, a traquina caça aos pardais com visco ou fisga, e enguias no rio de Colares, observados pelos patos grasnando nas margens.

Certo dia, irrequietos, lembraram-se de fingir que se estavam a afogar no rio e escondidos deram em gritar por socorro atrás do canavial, a simular um afogamento e pondo a tia Teresa a correr direita ao rio, mais o Gaitinhas que podava as roseiras. Chegados, logo se desfizeram em risadas, haviam caído na peta, a tia a arfar, a pedir um copo de água, não ganhara para o susto, o Gaitinhas, ruborizado, correu atrás do António com uma cana, para o espancar. Claro está que foram cinco dias de castigo, sem ir à praia nem groselha, o traseiro vermelho de merecidas palmadas, uma história para rir a bandeiras despregadas nos tempos seguintes.

Vários anos passaram. De novo a brisa vinda do oceano voltou a soprar sobre a velha casa, o elétrico dolente estrada abaixo, a fazer a união do presente com o passado. No Verão de 2010, Jorge, engenheiro civil, casado e já pai, voltou à casa da sua adolescência, o pai falecera e decidiram manter a casa para o fim-de-semana. Os filhos, a Tininha e o Marcos, gostavam do sítio, e, como já antes os pais, fizeram amizade com o filho do António, o Jaime, aluno no Colégio Militar e orgulho do avô, o falecido Gaitinhas, alegres nos catorze anos de muito computador e zapping. A várzea permanecia igual, as mesmas casas português suave, burguesas, com alpendres e trepadeiras, o mesmo penetrante cheiro a maresia e pinheiro manso trazido com a brisa da tarde. As brincadeiras eram outras, nem piões nem cavalos de pau, antes videojogos e auriculares, e passeios de bicicleta à Praia Grande ou ao Angra, onde o pai, agora com cinquenta anos, se entretinha degustando uns camarões ao fim da tarde com aquele branco que o Faísca bem sabia.

Um sábado de Agosto, com churrasco em perspetiva para a noite, aventuraram-se num safari por um pomar fora, o rio domado serpenteava até á foz e as ovelhas do João pastavam sem pressas. Junto à margem, dois sapos saltitavam numa zona onde bogas cruzavam o riacho, com o verdete das águas paradas deixando escapar um cheiro nauseabundo. Tininha, surpresa com os sapos, aproximou-se, pôs um pé em falso na terra mole e caiu à água, logo se afundando e sem pé, não sabia nadar. Jaime lançou-se ao rio, mas a pequena batera com a cabeça numa pedra e estava inanimada e à deriva. Marcos correu a chamar o pai, que meio sonolento cortava a relva, sob o olhar atento do Boris, o rafeiro de estimação.

-Pai, venha depressa, a Tininha está a afogar-se! Caiu ao rio e não reage! -assustado, na pressa, perdeu até o auricular.

-O quê? De verdade? Deixa-te de brincadeiras, Marcos, que não se brinca com coisas sérias! -repreendeu o pai, logo lembrado da história passada consigo quarenta anos antes. Os miúdos são todos iguais, pensou, continuando a regar.

-É verdade, acredite! O Jaime até lhe está a fazer respiração boca a boca! –Marcos reclamava por não ser levado a sério.

-O quê? Isso é que não, nada de abusos! Onde é que estão esses dois? – reagiu, largando a mangueira e inadvertidamente molhando o Boris, que correu a esconder-se na casota.

-Venha comigo ao Covão, depressa!

No local, Tininha, ainda meio zonza e encharcada, estava já encostada a um carvalho, a mão do Jaime, o salvador do dia, segurava a dela.

-Tininha! Estás bem miúda? Por que é que não me disseste o que aconteceu á tua irmã, Marcos, onde estás com a cabeça? -Jorge recordou a imagem da tia Teresa e do Gaitinhas aflitos nesse mesmo local anos antes.

-Mas, pai, acabei de te dizer! Ninguém me dá ouvidos, bolas! –refilou amuado, dando um pontapé numa pedra.

Depois de seca e retemperada, levou-a para casa, ao colo, o Jaime promovido a seu herói, recuperada do susto, mas recordando o bafo ofegante e fresco dos lábios do amigo, até que valera a pena apesar de tudo, quando a Mónica soubesse...

À noite, no caramanchão iluminado por pirilampos, Jorge dando uma passa no cachimbo recordava a brincadeira, essa sim malandreca, de anos atrás, ao longe e quebrando o silêncio, os sapos coaxavam no riacho. Os anos haviam passado, mas o rio, silhueta de fertilidade e força, continuava companheiro das renovadas estações de várias vidas.

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