terça-feira, 11 de novembro de 2014

Joseph- Partes I e II

MIGUEL BARRILARO RUAS 

I- A árvore
“ Venham as desilusões, e façam-me sentir vivo; venham as tristezas, as lágrimas, e façam-me sentir humano. Já outra coisa, a apatia, um vazio e uma indiferença que não despertam qualquer tipo de sentimento ou reacção [rabiscos) … é quase como se não existíssemos.”

Eram estas as palavras que Joseph escrevia, encostado ao tronco de uma velha figueira solitária, na ânsia de aliviar a torpeza em que caíra a sua alma.

Depois de duas horas ali sentado, Joseph decide finalmente levantar-se, abandonando a sua mais íntima e fiel companheira de introspeções e devaneios (não ouvia, não falava nem se movia; continha antes uma quietude tranquila, simples e quase divina, que inspirava todos os que por lá passavam).

Seguiu então para sua casa. Quando chegou às primeiras habitações da aldeia, cumprimentou os escassos transeuntes que simplesmente descansavam ou liam nos alpendres. Lá ia subindo, calmamente, a rua íngreme, quando ouviu um emaranhado de vozes agitadas vindas do bar. Pareceram a Joseph vozes animadas. Não resistiu a dar uma espreitadela.

Ao entrar, reparou que estava tudo muito mais animado e bebido do que de costume para um dia da semana; mas, como era teimosamente costume em Joseph nos últimos tempos, pouco se deixou impressionar.

Para contrariar essa sua paralisia, decidiu pedir uma bebida forte, que o desentorpecesse de um trago. E assim o fez: sentou-se o mais comodamente que pôde e pediu, quase ofegante, com a voz trémula, um whisky duplo sem gelo. Deu um gole valente e puxou de um leuca cigarro

O café possuía todo um ambiente que o distinguia dos demais: era impressionantemente amplo, com um pé direito de cerca de quatro metros de altura, sustentado por enormes vigas de madeira, compostas perpendicularmente, e por robustas colunas cravadas vigorosamente no chão. Tinha cerca de nove mesas, também elas de madeira, quase distribuídas ao acaso, que pareciam ter brotado naturalmente do solo a partir de sólidas raízes de árvore.

A iluminação era bastante difusa, opaca, dando ao café um certo ar sombrio, que convidava a diálogos sérios e a reflexões misteriosas. Mas o que seria totalmente impossível de não reparar, até mesmo ao rei dos sóbrios, era no maravilhoso balcão de mármore, liso como são as novas capas dos livros, mas cheio de salpicos brancos que faziam recordar constelações. Muitos naquela aldeia sentiam-se misteriosamente atraídos por aquele balcão, e era costume contar-se que houvera quem estivesse prestes a transformar-se em um.

Mas o mais digno de ser referido, e que naturalmente provocará a admiração do nosso leitor, é o facto de todos os inúmeros frequentadores do bar, e, aliás, da esmagadora maioria dos habitantes daquela aldeia, se ocuparem da profissão da escrita. Todos eram escritores! É a verdade. De vários estilos literários distintos, claro está, mas todos escreviam livros. E era dessa forma que ganhavam a vida.

Joseph reparou que os autores, nesse dia, não obedeciam à tendência natural de se ordenarem nas mesas de acordo com o estilo literário a que pertenciam: os filósofos e ensaístas, normalmente dispostos no canto mais escuro e recôndito do café, estavam dispersos por todo o espaço e em incomum alvoroço; os poetas, conhecidos pela vida boémia e pela irreverência com que enfrentavam as bebidas alcoólicas, encontravam-se mais sóbrios do que o natural, mas mais despertos e vivaços do que nunca, esgueirando-se a monte sobre uma única mesa. Os escritores de policiais, por norma um pouco solitários e introvertidos, falavam alegremente entre os seus companheiros de letras… Todos se encontravam mais animados que o habitual, inclusive os romancistas, cronistas e talentosos escritores de ficção científica; pairava naquele lugar um frenesim invulgar.

O alvo de tanta curiosidade, percebeu Joseph, ainda antes de ter acabado de virar o whisky, era o velho gorducho Norbert, que acabara de escrever aquele que dizia ser o seu último livro. Norbert era um escritor que já contava com mais de trinta livros no seu currículo – a maioria dedicados a questões controversas de psicologia familiar.

Todos tentavam ver o título do livro de Norbert, que fazia teimosamente questão de guardar segredo. Já não o viam fora de casa fazia um ano e meio, tamanha deveria ser a sua dedicação ao dito cujo.

Mas eis que, com enorme espanto para todos, viram o autor levantar-se e anunciar que, antes de apresentar ao público a sua obra, iria realizar uma grande cerimónia, em honra ao fim da sua extensa obra literária; enfadonha, é certo, mas laborada com enorme paixão. Iria ser certamente um festim memorável.

- Faço questão que todos compareçam –, afirmou Norbert em êxtase – Incluindo tu Joseph! Pode ser que este meu livro seja um bom antídoto para essa tua depressão!


II-O cemitério e as escadas

As horas iam passando e Joseph perdeu a conta aos whiskys que já tinha bebido. Apesar de sozinho no balcão, parecia-lhe que todos seguiam o compasso da sua embriaguez. Afinal, era dia de festa; Norbert merecia, pela última obra que acabara de escrever, que fosse uma noite memorável; era assim que todos deviam pensar.

E eis que, ao tocar o sino da igreja, anunciando as onze horas da noite, Norbert se levanta bruscamente da mesa, de tal modo que metade do seu canecão de cerveja é derramado no chão. O café fica repentinamente em silêncio, para escutar o que tinha a dizer:
–“Mui estimados companheiros de letras… como já todos devem saber, hoje festejo o fim da minha obra literária. O meu alfabeto chega ao fim. Ficou assim decidido. Tenho já tudo organizado em minha casa para que nesta precisa noite se dê uma tertúlia inesquecível. Sigam-me então, por favor, com a consciência de que hoje ninguém entrará em minha casa sóbrio, lá permanecerá sem estar bêbedo e sairá menos sábio: apenas e só mais confuso! Vamos ao que interessa!
Com Norbert a comandar as hostes, deu-se imediatamente início a uma frenética procissão até à sua casa.
O bar tinha sido completamente despojado de todas as bebidas. O dono, Richard, fiel seguidor das tradições da terra, facilmente consentiu em tal empreendimento, tendo-se ele mesmo juntado à causa de escritores.
Joseph foi o último a sair do café. Não lhe apetecia tomar parte dos acesos diálogos que iam animando os seus colegas de profissão. Não deixou por isso de ir escutando o que diziam, à medida que os acompanhava, um pouco mais atrás.
O filósofo conde Péricles (como o próprio se intitulava) criticava o novato romancista Viriato pela excessiva importância que dava nos livros à descrição fisionómica das personagens. No entender de Péricles, tal não permitia ao leitor formular uma ideia própria dos sujeitos imaginários, induzindo-o a concebê-los nos termos determinados pelo autor. Dizia que nunca precisava de fazer qualquer menção aos traços físicos das personagens, pois que eram das suas ideias e ações que o leitor construía criativamente a sua aparência física. E era aí que residia, em parte, o encanto dos textos com maior expressão narrativa que escrevera.
Viriato limitou-se a argumentar respeitosamente que nem todos os leitores são iguais, e que há uns mais sensíveis aos detalhes, não só das personagens, mas também dos ambientes e dos objetos. O filósofo não respondeu, não se chegando portanto a qualquer conclusão, como é tão natural entre os homens, e uma espécie de regra entre os escritores, ainda para mais bêbedos.
Os convidados de Norbert teriam que percorrer cerca de 15 minutos a pé, praticamente sempre a subir, até à casa apalaçada.
A um pouco menos de metade do caminho, os autores passaram junto ao cemitério das personagens, o local mais plano daquele percurso. Ali não moravam protagonistas, pois apenas as personagens perdidas pelo caminho tinham o direito de ali permanecer.
Se não fosse o conde Péricles a chamar a atenção dos companheiros, todos, com a exceção de Joseph, ter-se-iam esquecido de ficar em silêncio, como ditava o hábito já ancestral, quando por ali se passava.
A Joseph causava um profundo desgosto estar perto daquele local. E tinha razões para isso: As suas personagens falhadas compunham já cerca de um terço das sepulturas do cemitério. Não tinham passado da condição de rabiscos. Rabiscos que, quem tivera a oportunidade de ler, considerava assaz geniais, mas que, não chegando a compor-se a sua comunhão com um mundo, com o mundo, permaneciam sepultadas na escuridão. Com quarenta anos de idade, numa aldeia onde se vivia da escrita, Joseph ainda não tinha ainda escrito um livro. Nem ele percebia como os outros ainda acalentavam tamanha esperança em relação à sua primeira obra, cuja publicação acreditavam estar sempre…para breve. Joseph sabia que não ter publicado ainda nada numa aldeia de escritores era um escândalo.
Joseph sentia talvez que não estava no sítio certo para escrevê-lo... 
Pensava nisto e em soluções de inspiração, praticamente esgotadas, quando o poeta Verniz Nunes, sempre atento aos sintomas da introspeção alheios, lhe oferece uma palmada nas costas e uma tampinha de absinto a transbordar. Joseph apercebe-se do frio que faz. Acena agradecidamente a Nunes e bebe com prazer. Tinha-se quase esquecido de que se ia festejar um grande acontecimento.
 -“Vá…hoje não é dia para pensamentos sombrios, Joseph. Vamos comer e beber em honra a deus Baco e, talvez depois de amanhã, poderás retomar livremente os teus raciocínios”, encorajou com boa disposição Nunes.
Iam subindo agora, e já bastante tontos, as monumentais escadas das citações, onde em cada degrau estava inscrita uma pequena frase da autoria dos ilustres habitantes. Aqui, Joseph também tinha gravado um pensamento:
Vale mais partilhar o engano do que conservá-lo na escuridão. Sozinhos não podemos suportar o mistério da existência”.

CONTINUA

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