I- A árvore
“ Venham as
desilusões, e façam-me sentir vivo; venham as tristezas, as lágrimas, e
façam-me sentir humano. Já outra coisa, a apatia, um vazio e uma indiferença
que não despertam qualquer tipo de sentimento ou reacção [rabiscos) … é quase
como se não existíssemos.”
Eram estas
as palavras que Joseph escrevia, encostado ao tronco de uma velha figueira
solitária, na ânsia de aliviar a torpeza em que caíra a sua alma.
Depois de
duas horas ali sentado, Joseph decide finalmente levantar-se, abandonando a sua
mais íntima e fiel companheira de introspeções e devaneios (não ouvia, não
falava nem se movia; continha antes uma quietude tranquila, simples e quase
divina, que inspirava todos os que por lá passavam).
Seguiu então
para sua casa. Quando chegou às primeiras habitações da aldeia, cumprimentou os
escassos transeuntes que simplesmente descansavam ou liam nos alpendres. Lá ia
subindo, calmamente, a rua íngreme, quando ouviu um emaranhado de vozes
agitadas vindas do bar. Pareceram a Joseph vozes animadas. Não resistiu a dar
uma espreitadela.
Ao entrar,
reparou que estava tudo muito mais animado e bebido do que de costume para um
dia da semana; mas, como era teimosamente costume em Joseph nos últimos tempos,
pouco se deixou impressionar.
Para
contrariar essa sua paralisia, decidiu pedir uma bebida forte, que o
desentorpecesse de um trago. E assim o fez: sentou-se o mais comodamente que
pôde e pediu, quase ofegante, com a voz trémula, um whisky duplo sem gelo. Deu
um gole valente e puxou de um leuca cigarro
O café
possuía todo um ambiente que o distinguia dos demais: era impressionantemente
amplo, com um pé direito de cerca de quatro metros de altura, sustentado por
enormes vigas de madeira, compostas perpendicularmente, e por robustas colunas
cravadas vigorosamente no chão. Tinha cerca de nove mesas, também elas de
madeira, quase distribuídas ao acaso, que pareciam ter brotado naturalmente do
solo a partir de sólidas raízes de árvore.
A iluminação
era bastante difusa, opaca, dando ao café um certo ar sombrio, que convidava a
diálogos sérios e a reflexões misteriosas. Mas o que seria totalmente
impossível de não reparar, até mesmo ao rei dos sóbrios, era no maravilhoso
balcão de mármore, liso como são as novas capas dos livros, mas cheio de
salpicos brancos que faziam recordar constelações. Muitos naquela aldeia
sentiam-se misteriosamente atraídos por aquele balcão, e era costume contar-se
que houvera quem estivesse prestes a transformar-se em um.
Mas o mais
digno de ser referido, e que naturalmente provocará a admiração do nosso
leitor, é o facto de todos os inúmeros frequentadores do bar, e, aliás, da
esmagadora maioria dos habitantes daquela aldeia, se ocuparem da profissão da
escrita. Todos eram escritores! É a verdade. De vários estilos literários
distintos, claro está, mas todos escreviam livros. E era dessa forma que
ganhavam a vida.
Joseph
reparou que os autores, nesse dia, não obedeciam à tendência natural de se
ordenarem nas mesas de acordo com o estilo literário a que pertenciam: os
filósofos e ensaístas, normalmente dispostos no canto mais escuro e recôndito
do café, estavam dispersos por todo o espaço e em incomum alvoroço; os poetas,
conhecidos pela vida boémia e pela irreverência com que enfrentavam as bebidas
alcoólicas, encontravam-se mais sóbrios do que o natural, mas mais despertos e
vivaços do que nunca, esgueirando-se a monte sobre uma única mesa. Os
escritores de policiais, por norma um pouco solitários e introvertidos, falavam
alegremente entre os seus companheiros de letras… Todos se encontravam mais
animados que o habitual, inclusive os romancistas, cronistas e talentosos
escritores de ficção científica; pairava naquele lugar um frenesim invulgar.
O alvo de
tanta curiosidade, percebeu Joseph, ainda antes de ter acabado de virar o
whisky, era o velho gorducho Norbert, que acabara de escrever aquele que dizia
ser o seu último livro. Norbert era um escritor que já contava com mais de
trinta livros no seu currículo – a maioria dedicados a questões controversas de
psicologia familiar.
Todos
tentavam ver o título do livro de Norbert, que fazia teimosamente questão de
guardar segredo. Já não o viam fora de casa fazia um ano e meio, tamanha
deveria ser a sua dedicação ao dito cujo.
Mas eis que,
com enorme espanto para todos, viram o autor levantar-se e anunciar que, antes
de apresentar ao público a sua obra, iria realizar uma grande cerimónia, em
honra ao fim da sua extensa obra literária; enfadonha, é certo, mas laborada
com enorme paixão. Iria ser certamente um festim memorável.
- Faço questão que todos compareçam –,
afirmou Norbert em êxtase – Incluindo tu
Joseph! Pode ser que este meu livro seja um bom antídoto para essa tua
depressão!
II-O cemitério e as escadas
II-O cemitério e as escadas
As horas iam passando e Joseph perdeu a conta aos whiskys
que já tinha bebido. Apesar de sozinho no balcão, parecia-lhe que todos seguiam
o compasso da sua embriaguez. Afinal, era dia de festa; Norbert merecia, pela
última obra que acabara de escrever, que fosse uma noite memorável; era assim
que todos deviam pensar.
E eis que, ao tocar o sino da igreja, anunciando as onze
horas da noite, Norbert se levanta bruscamente da mesa, de tal modo que metade
do seu canecão de cerveja é derramado no chão. O café fica repentinamente em
silêncio, para escutar o que tinha a dizer:
–“Mui estimados companheiros de letras… como já todos devem
saber, hoje festejo o fim da minha obra literária. O meu alfabeto chega ao fim.
Ficou assim decidido. Tenho já tudo organizado em minha casa para que nesta
precisa noite se dê uma tertúlia inesquecível. Sigam-me então, por favor, com a
consciência de que hoje ninguém entrará em minha casa sóbrio, lá permanecerá
sem estar bêbedo e sairá menos sábio: apenas e só mais confuso! Vamos ao que
interessa!”
Com Norbert a comandar as hostes, deu-se imediatamente
início a uma frenética procissão até à sua casa.
O bar tinha sido completamente despojado de todas as
bebidas. O dono, Richard, fiel seguidor das tradições da terra, facilmente
consentiu em tal empreendimento, tendo-se ele mesmo juntado à causa de
escritores.
Joseph foi o último a sair do café. Não lhe apetecia tomar
parte dos acesos diálogos que iam animando os seus colegas de profissão. Não
deixou por isso de ir escutando o que diziam, à medida que os acompanhava, um
pouco mais atrás.
O filósofo conde Péricles (como o próprio se intitulava)
criticava o novato romancista Viriato pela excessiva importância que dava nos
livros à descrição fisionómica das personagens. No entender de Péricles, tal
não permitia ao leitor formular uma ideia própria dos sujeitos imaginários,
induzindo-o a concebê-los nos termos determinados pelo autor. Dizia que nunca
precisava de fazer qualquer menção aos traços físicos das personagens, pois que
eram das suas ideias e ações que o leitor construía criativamente a sua
aparência física. E era aí que residia, em parte, o encanto dos textos com
maior expressão narrativa que escrevera.
Viriato limitou-se a argumentar respeitosamente que nem
todos os leitores são iguais, e que há uns mais sensíveis aos detalhes, não só
das personagens, mas também dos ambientes e dos objetos. O filósofo não
respondeu, não se chegando portanto a qualquer conclusão, como é tão natural
entre os homens, e uma espécie de regra entre os escritores, ainda para mais
bêbedos.
Os convidados de Norbert teriam que percorrer cerca de 15
minutos a pé, praticamente sempre a subir, até à casa apalaçada.
A um pouco menos de
metade do caminho, os autores passaram junto ao cemitério das personagens, o
local mais plano daquele percurso. Ali não moravam protagonistas, pois apenas
as personagens perdidas pelo caminho tinham o direito de ali permanecer.
Se não fosse o conde Péricles a chamar a atenção dos
companheiros, todos, com a exceção de Joseph, ter-se-iam esquecido de ficar em
silêncio, como ditava o hábito já ancestral, quando por ali se passava.
A Joseph causava um profundo desgosto estar perto daquele
local. E tinha razões para isso: As suas personagens falhadas compunham já
cerca de um terço das sepulturas do cemitério. Não tinham passado da condição
de rabiscos. Rabiscos que, quem tivera a oportunidade de ler, considerava assaz
geniais, mas que, não chegando a compor-se a sua comunhão com um mundo, com o
mundo, permaneciam sepultadas na escuridão. Com quarenta anos de idade, numa
aldeia onde se vivia da escrita, Joseph ainda não tinha ainda escrito um livro.
Nem ele percebia como os outros ainda acalentavam tamanha esperança em relação
à sua primeira obra, cuja publicação acreditavam estar sempre…para breve. Joseph
sabia que não ter publicado ainda nada numa aldeia de escritores era um
escândalo.
Joseph sentia talvez que não estava no sítio certo para
escrevê-lo...
Pensava nisto e em soluções de inspiração, praticamente
esgotadas, quando o poeta Verniz Nunes, sempre atento aos sintomas da
introspeção alheios, lhe oferece uma palmada nas costas e uma tampinha de
absinto a transbordar. Joseph apercebe-se do frio que faz. Acena
agradecidamente a Nunes e bebe com prazer. Tinha-se quase esquecido de que se
ia festejar um grande acontecimento.
-“Vá…hoje não é dia
para pensamentos sombrios, Joseph. Vamos comer e beber em honra a deus Baco e,
talvez depois de amanhã, poderás retomar livremente os teus raciocínios”,
encorajou com boa disposição Nunes.
Iam subindo agora, e já bastante tontos, as monumentais
escadas das citações, onde em cada degrau estava inscrita uma pequena frase da
autoria dos ilustres habitantes. Aqui, Joseph também tinha gravado um pensamento:
“Vale mais partilhar o engano do que conservá-lo na
escuridão. Sozinhos não podemos suportar o mistério da existência”.
CONTINUA
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