segunda-feira, 17 de novembro de 2014

A "praça" de Sintra

CARLOS CAMACHO

Desde miúdo que comecei a ir para a Praça de Sintra com o meu pai.
Nas madrugadas de Verão de 1978 saíamos às 3 da manhã com a Ford Transit “café-com-leite” novinha em folha, DV-29-21, completamente carregada. Encostávamos com a venda junto ao portão do número 13 da rua Ulisses Alves, em frente à vivenda “O Meu Cantinho”, paredes meias com a Praça de Sintra.

Cenoura e Feijão-Verde eram a principal seara cá da casa. Produzíamos mensalmente nos meses de Verão várias toneladas que, invariavelmente, me passavam pelo lombo, saco a saco, madrugada após madrugada até retornar às aulas no início de Outubro.

Segundas e Quintas eram dias de colheita. O pessoal cá da casa e vizinhas contratadas apanhavam, um a um, o feijão-verde no meio da densa e verdejante folhagem. As cenouras colhiam-se com o “engaço” do Zé Bacalhau. Após separadas da rama eram lavadas, ensacadas e pesadas. Cada saca era pegada mais de dez vezes até estar, finalmente, entregue no carro ao cliente.

Merceeiros madrugadores das redondezas que se iam abastecer ao mercado grossista eram a nossa freguesia. O Ti Zé Galego, minhoto de Melgaço e fumador inveterado de Português suave sem filtro; O Lopes de Rio de Mouro; as Primas das Lameiras e um sem número de fregueses compunham a freguesia habitual. Conhecia-lhes os carros todos e melhor os porta-bagagens, onde aterravam as sacas de cenoura e feijão-verde.

Nos meus 14 anos era uma verdadeira esponja a absorver tudo o que me rodeava.

O cheiro de uma praça de legumes é único, fresco, limpo, transparente, alegre. A minha memória olfactiva inebriou-se recentemente na zona dos legumes do Mercado Abastecedor Região de Lisboa. Lá estava ele, o cheiro. O cheiro intenso do alho francês misturado com o adocicado odor dos coentros, cenoura e hortelã. Vida!

Na Praça de Sintra as pessoas eram genuínas, transparentes e sinceras. A oferta e procura eram diárias e permanentes, naturais e desinteressadas, abundantes e presentes. A conversa era sobre tudo e mais alguma coisa, directa e objectiva. Cada um sabia quem era e quem tinha à sua frente. Não havia máscaras sociais.

A Praça de Sintra era um autêntico “microclima” humano. Ali se cruzavam todos os tipos de pessoas originárias dos mais diversos pontos. Agricultores da zona saloia, merceeiros das redondezas, revendedores da zona Oeste e os “habitués”, pessoas que só lá iam de madrugada pelo gosto de viver o bulício da Praça. Também outros começavam as “hostilidades matinais” na Tasca da Teresa com os bagaços, abafadinhos e brancos traçados, engarrafados vezes sem conta nas usadas garrafas perfiladas na prateleira de madeira escura de tanto baptismo.

Às seis da manhã abria o edifício da Praça. A pé desde as 3 e quase com meio-dia de trabalho, estava na hora de repor as energias com uma sandes de queijo da ilha e um fumegante café-de-saco servido num pesado e riscado copo de vidro, típico recipiente adoptado pela Teresa  da Tasca. Delicioso. Nunca mais consegui o mesmo paladar em lado nenhum.

Naqueles dez minutos de merecido descanso entravam e saíam, como que cumprindo um ritual definido, clientes à vez repondo o combustível necessário para, nas noites mais frescas, acalorar os corpos curvados da idade. Cúmplices trocas de olhar bastava para que as bebidas surgissem como que por magia no poroso balcão de mármore gasto pelos anos de sucessivas madrugadas cumpridas.

Nesse cortejo matinal, destacava-se um casal na casa dos 60. O Sequeira e a sua esposa, donos de uma pacata mercearia de Sintra. O Sequeira, de estatura mediana e altivez constante, contrastava com a sua baixa e engelhada esposa. Cumpriam religiosamente a rotina matinal. Tasca da Teresa, voltinha à Praça. Tasca da Teresa, voltinha à Praça ... .

Ele conversador, jovial e presente. Resistente da moda do bigode à “Clark Gable”, espalhava boa disposição na madrugada ensonada. Ela calada e azeda. Ele de mãos nos bolsos das calças de sarja coçada, boné aos quadrados, casaco de fazenda cinzento e bota de cabedal. Ela de Xaile da cabeça aos pés. Só se viam os olhitos, o nariz e um ralo bigodito. Ele queria comprar Feijão-verde, Cenouras, Pepino, Alho-Francês e Couve-Flor. Ela não.

Na negociata dos legumes falava o Sequeira e sempre com autoridade:

Ó Camacho, a como é que está hoje o feijão-verde?” Indagava dirigindo-se ao meu pai.

O sotaque beirão adquiria especial ênfase na voltinha da Tasca:

Ó Teresa. Bota aí um copito para mim e meio para a minha senhora.” Dizia o Sequeira olhando de soslaio para a sua mulher inchando a peitaça. De imediato era fuzilado com os olhos, adivinhando uma ameaça velada. Emendava num ápice: “Enche os dois, enche os dois...”.

E a Teresa enchia...

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