FREDERICO PARADELA DE ABREU
A escoliose define-se como um desvio da coluna vertebral para
um dos lados. As actividades que fazemos ao longo da vida podem potenciar esse
desvio. Quem estiver familiarizado com a silhueta do tenista Rafael Nadal
captará bem a noção das assimetrias provocadas pelo uso que damos ao nosso
corpo. Tomados de forma isolada, facilmente se atribuiria o seu braço esquerdo
a um lutador de Jiu Jitsu, na
categoria de peso pesado, e o direito a um bibliotecário que recentemente se inscreveu
num ginásio por recomendação do seu médico. O problema é que estas duas
«personagens» musculares, bastante distintas, estão ligadas à mesma estrutura e
isso interfere com o seu bom funcionamento a longo prazo.
É normal que haja sempre um lado mais desenvolvido do que o
outro, um destro dará inconscientemente preferência ao braço direito para
executar uma panóplia de actividades rotineiras ao longo da sua vida, como
levar o saco das compras, lavar os dentes, et
cetera. Contudo, existem estilos de vida que conduzem para um
desalinhamento e assimetria da coluna vertebral acentuados podendo degenerar em
dor e desconforto muscular, deficiências respiratórias, entre outros malefícios.
Não mata mas mói.
Passando agora para o órgão mais misterioso do corpo humano,
onde nestes últimos anos se tem descoberto novas e surpreendentes evidências
sobre ele. Digo surpreendentes porque realmente quem pagou uma operação para
retirar o apêndice deve estar surpreendido por ele afinal ser preciso. Mas
deixemos isso agora. Passemos antes para o segundo órgão mais misterioso do
corpo humano: o cérebro.
O cérebro está dividido em dois hemisférios, esquerdo e
direito, cada um responsável por determinadas funções. Contudo, as novas
experiências neste campo têm vindo a questionar a tese de que os hemisférios
cerebrais possuem uma divisão de tarefas rígida, sendo portanto um processo
interactivo entre ambos mas mantendo a lateralização nos domínios em que cada
metade é especialista. Aliás, estamos a falar de uma área em que as evidências
científicas que existem são frágeis e facilmente temos de manhã uma evidência a
dizer que é por ali, e à tarde, no próprio dia, termos outra a dizer que afinal
é por acolá – semelhante às alterações de governo durante a Primeira República mas
sem tanto aparato – Portanto, tudo o que for aqui dito vale enquanto valer.
O hemisfério esquerdo processa de forma lógica, racional,
analítica, funcional. Pensa sequencialmente – reconhece ocorrências em série.
Exemplos de funções seriais desempenhadas pelo hemisfério esquerdo são as
actividades verbais como falar, compreender o discurso de outras, ler e
escrever. Por seu turno, o hemisfério direito processa de forma simultânea,
contextual, sintética, metafórica e estética. Apreende a realidade em termos
holísticos – reconhece padrões e interpreta as coisas simultaneamente. É
responsável por compreender o significado das emoções e expressões não-verbais.
Inúmeros estudos demonstram que o hemisfério direito está incumbido de perceber
as metáforas. Imaginemos que recebe uma carta nos dia dos namorados de alguém a
dizer que vai “abrir o coração para si”. Graças ao hemisfério esquerdo foi
capaz de ler a frase contida na carta mas pode agradecer ao hemisfério direito
por fazer com que não entre em pânico julgando que o remetente acabou de
espetar uma faca no seu próprio peito para que você pudesse espreitar o interior
do coração dessa pessoa, pois é o hemisfério direito o responsável pelo
decifrar de que aquela frase é o anúncio de uma declaração de amor e não um
convite para um novo e bizarro hobby
da moda: heartwatching – Peço
encarecidamente aos cibernautas com queda para o satanismo que não abandonem o
exercício retórico em que aquele conceito foi criado e não o tornem «uma coisa»,
por favor.
Sendo que cada hemisfério é especializado em certas áreas, as
actividades ligadas as esses domínios desenvolvem maioritariamente o hemisfério
que é chamado a intervir. Ao ler estarei a trabalhar maioritariamente o hemisfério
esquerdo e ao desenhar estarei a trabalhar maioritariamente o hemisfério
direito, por exemplo. Posto isto, e com o eco da linha de pensamento
supracitada (lá bem supra no texto) ainda bastante audível, facilmente
inferimos que as actividades que fazemos ao longo da vida podem contribuir para
uma assimetria entre hemisférios podendo degenerar em escoliose cerebral.
E isto é preocupante? Epá… é. Uma escoliose cerebral para o
lado esquerdo dá origem a uma existência fria sem emoção, semelhante à das
máquinas, e uma escoliose cerebral para o lado direito gera uma realidade
histérica e disfuncional incapaz de criar o seu próprio manual de instruções de
sobrevivência. Quem precisar de evidências para aceitar esta tese basta
convidar um contabilista para ir tomar café ou tentar organizar um evento de
relativa complexidade com um indivíduo de belas-artes.
Tal como a escoliose normal, a escoliose cerebral também
causa dor e desconforto (deficiências respiratórias ainda não houve registo de
algum caso clínico) mas neste contexto em vez de nos músculos é na mente. E
isso torna tudo muito mais delicado porque a mente é terreno intangível e
portanto mais difícil de tratar mas também de diagnosticar. A escoliose
cerebral também não mata mas mói porém se calhar era preferível que matasse
porque assim receberia a devida atenção. As pessoas falham o diagnóstico porque
habituam-se à redução dos padrões de bem-estar mental e emocional,
acomodando-se a essa realidade «moída». O hábito gera tolerância.
Com base nos estudos do INEI (Instituto Nacional de Estatísticas
Inventadas), as estatísticas dizem-nos que 3 em cada 5 portugueses sofrem de
escoliose cerebral. Ora os números são assustadores mas mais assustador é o
facto de uma das principais causas ter na génese do seu propósito o desígnio
oposto. O ensino público português forma todos os anos milhares de «Rafaeles
Nadales» cerebrais. Porquê? Porque dedica mais tempo e atenção às disciplinas
que trabalham com o hemisfério esquerdo: Português, Matemática, etc., negligenciando
as restantes.
Esta conversa não é nova, e tão-pouco é minha intenção dizer
que o hemisfério esquerdo é um vilão opressor do hemisfério direito. Mas a
verdade é que há na sociedade uma enorme assimetria estrutural para o lado
esquerdo. Mas se há, ainda bem que é para o lado esquerdo, se fosse para o lado
direito estávamos tramados. Os relógios derreteriam e nenhum transporte público
chegaria a horas, os aviões não estariam sincronizados e as buzinas dos carros
emitiriam excertos de textos humorísticos a cada apitadela, entre outros
surrealismos insustentáveis para a vida gregária de animais verbalizadores. Se
bem que seria giro imaginar um pintor a chegar ao ponto de saturação pela falta
de rotina, atirando o pincel e a palete ao chão, gritando veemente “Basta! Fini cette merde!”, e saindo a correr do
seu ateliê em direcção à primeira loja Armani
que encontrasse, vestindo um bom fato, sacrificando o conforto da sua traqueia
com genuíno prazer através da utilização de uma gravata, e, libertando-se do
mundo desregrado e desconexo onde trabalhava há já mais de 30 anos, indo
perseguir o seu sonho de criança de ser banqueiro, trabalhando com um horário e
salário fixos, vivendo de forma estável e pacata.
Em jeito de conclusão para esta reflexão sobre as assimetrias
cerebrais poderia inserir uma máxima (em itálico) sobre o «equilíbrio» ou
poderia coligir uma mão cheia de estudos de várias áreas, capitaneadas pela
Psicologia, para dar força à mensagem de que o equilíbrio é a chave do
bem-estar mental e emocional mas a verdade é que ao longo das nossas vidas
fomos acumulando evidências estatísticas de dias e dias de acordar de manhã e
ir viver acontecimentos e experiências que demonstram que o equilíbrio é mesmo
a chave de tudo. Combater a escoliose cerebral é acumular mais uma evidência
aos resultados dessa investigação científica em que todos
trabalhamos diariamente chamada: existência.