O Evangelho Segundo Lázaro,
novo livro de Richard Zimler, segue a construção habitual dos seus anteriores
romances: 1. - um horizonte histórico real atravessado por elementos do
fantástico, neste caso no imaginário judaico; 2. – um estilo realista ancorado
nos movimentos sociais e ideológicos da época, neste caso nas lutas colectivas
de revolta contra o invasor romano da Judeia; 3. – uma intriga bem alicerçada,
coesa nas suas partes, neste caso em torno da vida de Jesus Cristo e da
ressurreição de Lázaro; 4. – uma harmonia esteticamente bem conseguida entre os
diálogos, a descrição da realidade e a narração íntima (o interior da mente das
personagens), nes caso sobretudo através das divagações de Lázaro.
Neste sentido, na literatura
portuguesa actual, as narrativas de Richard Zimler constituem-se como as que
mais exploram o tema da relação entre História e Cultura, nomeadamente a da
espiritualidade judaica. No caso português, esta característica torna-se
evidente logo no seu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa (1996),
saga da família de Abraão Zarco ao longo da matança da comunidade judaica na
Lisboa dos Descobrimentos (1506). A família Zarco, através dos seus
descendentes, surgirá em outros romances do autor, como em Goa ou o Guardião da
Aurora (2005), em Meia-Noite ou o Princípio do Mundo (2003) e em A Sétima Porta
(2007). Do ponto de vista do romance europeu, Richard Zimler afirma-se como o
autor que mais longe leva, sem dogmatismos, a herança espiritual da cultura
judaica (não da religião).
O realismo permanece e domina
no seu segundo romance, Trevas de Luz (1998), a união entre Belticino, com medo
do escuro (alusão ao título), a viver em São Francisco, e Peter, um português
originário de Angola, dotado de um espírito andrógino, uma espécie de anjo
humano (passe o paradoxo). Meia-Noite ou o Princípio do Mundo (2003) é um dos
seus melhores romances, decorrido no século XIX no Porto e, a partir do
capítulo 30, na atmosfera escravocrata da América. “Meia-Noite” é um curandeiro
africano trazido pelo pai escocês de John Zarco Steward, o protagonista, da
África do Sul para o Porto. Tropas de Napoleão invadem esta cidade, o pai de
John é morto, a esposa e o filho exilam-se em Inglaterra, mais tarde John
seguirá para a América em busca de “neia-Noite”, que fora comprado e feito
escravo. “Meia-Noite” carrega consigo, na Europa e na América racionalistas,
positivistas e cristãs, o panteão dos deuses africanos: a Hiena – o mal; o
Louva-a-Deus – o bem, isto é, as forças biocósmicas criadoras e impulsionadoras
do mundo. E é invocando-as que “Meia-Noite” cura John soprando-lhe nos ouvidos.
A mãe de Jonh profere a frase principal do livro, frase-resumo da filosofia
errante sefardita (e, quem sabe, iluminadora de todos os romances do autor): “É
um paradoxo, mas penso que voltei de novo para casa num país estrangeiro” (p.
255). Goa ou o Guardião da Aurora (2005) explora o tema da prisão de alguns
descendentes da família Zarco pela Inquisição de Goa. Em À Procura de Sana
(2006), o narrador identifica-se com o autor, que conhece Sana num encontro de
escritores em Sidney. Sana suicida-se após a representação de Lisístrata de
Aristófanes e o narrador tenta reconstruir a vida e a identidade de Sana, que
passa pela sua amizade com Helena em Haifa (Israel), desenhando um convívio
frutuoso entre palestinianos e israelitas. A Sétima Porta (2007) traz-nos de
novo o universo da família Zarco e a descoberta de outros manuscritos de Abraão
Zarco (primeiro romance), que, decorrido ao longo da ascensão de Hitler ao
poder, descreve profecias sobre o fim do mundo, como que anunciando o
Holocausto judaico. A exploração do tema judaico continua em Os Anagramas de
Varsóvia (2009), decorrido no gueto de Varsóvia. Em A Sentinela (2013), o autor
tematiza a corrupção em Portugal nos negócios e na política.
2. - O Evangelho Segundo Lázaro
O Evangelho Segundo Lázaro
tematiza o milagre bíblico da ressurreição de Lázaro, narrando o mistério do
seu retorno à vida por efeito de um cântico e um encantamento de Jesus sobre o
peito de Lázaro. Jesus demorara-se, atrasara-se, não chegara a tempo de salvar
Lázaro da doença que o oprimia e, como que revoltado, e um pouco sem saber o
que está fazendo, ressuscita-o. Lázaro é apresentado como o grande amigo de
infância de Jesus. Lázaro salvara Jesus de morrer afogado, vincando mais os
laços de união entre os dois amigos e as suas famílias (José e Maria, pais de
Jesus, e o avô de Lázaro, bem como os seus dois filhos e as duas irmãs, Miriam
e Marta). O realismo histórico, habitual em Richard Zimler, obriga-o a grafar
as festas religiosas judaicas, os topónimos, a gastronomia, a flora, algumas
expressões e os nomes das personagens em hebraico, apresentando no final um
elucidativo e prestimoso “Glossário”. Torna-se, assim, mais coesa a narrativa,
evidenciando uma forte fidelidade aos veios históricos do tempo e do espaço
enquadradores do romance.
Jesus, ainda que com sólidas
ligações à transcendência, ao mundo do deus judaico, de quem se sente inspirado
e com o qual dialoga, é apresentado como um mágico e curandeiro popular, como
muitos que então existia no território de Israel, não como o profeta messiânico
dos quatro evangelhos canónicos. No final, Lázaro, recordando a vida do amigo e
o papel que nela desempenhou, escrevendo a seu neto Yaphiel, como que se
indigna de ver Jesus transformado em ídolo (messiânico) de comunidades cristãs
dogmáticas fanatizadas que constituirão, posteriormente, o corpo da futura
igreja de Roma.
A primeira meia centena de
páginas de O Evangelho Segundo Lázaro é fabulosa – a descrição (que é
igualmente narração intimista de Lázaro) do milagre da ressurreição. Vale o
romance todo! O que não significa menor qualidade das restantes, mas são estas
primeiras páginas que marcam a vinculação amorosa e encantatória de Lázaro a
Jesus, que ao amigo sacrifica vida, filhos e amizades. Lázaro é um ladrilheiro
e trabalha para os poderosos de Israel e para colonos romanos (Anás, Lucius…).
O sinédrio judaico não aceita a ressurreição de Lázaro e persegue-o,
obrigando-o a fazer silêncio do milagre, ainda que a população o considere um
abençoado e procure o seu convívio. O ambiente social e religioso é, assim, de
opressão de Roma sobre Israel, Jesus conclama a multidão judaica a invadir o
templo no tempo da Páscoa e, como relatado em outros evangelhos, é preso e
crucificado.
Verdadeiramente, Lázaro é
apresentado, no romance, como o 13º apóstolo, que, tal como Maria Madalena,
recolhida em segredo após a morte de Jesus, se mantém fiel à imagem do genuíno
Jesus, o verdadeiro, não o Cristo da futura igreja romana.
O Evangelho Segundo Lázaro,
Porto Editora, 456 pp, 17,70
euros.
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