quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Miguel Real escreve sobre o último livro de Richard Zimler

MIGUEL REAL



O Evangelho Segundo Lázaro, novo livro de Richard Zimler, segue a construção habitual dos seus anteriores romances: 1. - um horizonte histórico real atravessado por elementos do fantástico, neste caso no imaginário judaico; 2. – um estilo realista ancorado nos movimentos sociais e ideológicos da época, neste caso nas lutas colectivas de revolta contra o invasor romano da Judeia; 3. – uma intriga bem alicerçada, coesa nas suas partes, neste caso em torno da vida de Jesus Cristo e da ressurreição de Lázaro; 4. – uma harmonia esteticamente bem conseguida entre os diálogos, a descrição da realidade e a narração íntima (o interior da mente das personagens), nes caso sobretudo através das divagações de Lázaro.
Neste sentido, na literatura portuguesa actual, as narrativas de Richard Zimler constituem-se como as que mais exploram o tema da relação entre História e Cultura, nomeadamente a da espiritualidade judaica. No caso português, esta característica torna-se evidente logo no seu primeiro romance, O Último Cabalista de Lisboa (1996), saga da família de Abraão Zarco ao longo da matança da comunidade judaica na Lisboa dos Descobrimentos (1506). A família Zarco, através dos seus descendentes, surgirá em outros romances do autor, como em Goa ou o Guardião da Aurora (2005), em Meia-Noite ou o Princípio do Mundo (2003) e em A Sétima Porta (2007). Do ponto de vista do romance europeu, Richard Zimler afirma-se como o autor que mais longe leva, sem dogmatismos, a herança espiritual da cultura judaica (não da religião).
O realismo permanece e domina no seu segundo romance, Trevas de Luz (1998), a união entre Belticino, com medo do escuro (alusão ao título), a viver em São Francisco, e Peter, um português originário de Angola, dotado de um espírito andrógino, uma espécie de anjo humano (passe o paradoxo). Meia-Noite ou o Princípio do Mundo (2003) é um dos seus melhores romances, decorrido no século XIX no Porto e, a partir do capítulo 30, na atmosfera escravocrata da América. “Meia-Noite” é um curandeiro africano trazido pelo pai escocês de John Zarco Steward, o protagonista, da África do Sul para o Porto. Tropas de Napoleão invadem esta cidade, o pai de John é morto, a esposa e o filho exilam-se em Inglaterra, mais tarde John seguirá para a América em busca de “neia-Noite”, que fora comprado e feito escravo. “Meia-Noite” carrega consigo, na Europa e na América racionalistas, positivistas e cristãs, o panteão dos deuses africanos: a Hiena – o mal; o Louva-a-Deus – o bem, isto é, as forças biocósmicas criadoras e impulsionadoras do mundo. E é invocando-as que “Meia-Noite” cura John soprando-lhe nos ouvidos. A mãe de Jonh profere a frase principal do livro, frase-resumo da filosofia errante sefardita (e, quem sabe, iluminadora de todos os romances do autor): “É um paradoxo, mas penso que voltei de novo para casa num país estrangeiro” (p. 255). Goa ou o Guardião da Aurora (2005) explora o tema da prisão de alguns descendentes da família Zarco pela Inquisição de Goa. Em À Procura de Sana (2006), o narrador identifica-se com o autor, que conhece Sana num encontro de escritores em Sidney. Sana suicida-se após a representação de Lisístrata de Aristófanes e o narrador tenta reconstruir a vida e a identidade de Sana, que passa pela sua amizade com Helena em Haifa (Israel), desenhando um convívio frutuoso entre palestinianos e israelitas. A Sétima Porta (2007) traz-nos de novo o universo da família Zarco e a descoberta de outros manuscritos de Abraão Zarco (primeiro romance), que, decorrido ao longo da ascensão de Hitler ao poder, descreve profecias sobre o fim do mundo, como que anunciando o Holocausto judaico. A exploração do tema judaico continua em Os Anagramas de Varsóvia (2009), decorrido no gueto de Varsóvia. Em A Sentinela (2013), o autor tematiza a corrupção em Portugal nos negócios e na política.
2.        - O Evangelho Segundo Lázaro
O Evangelho Segundo Lázaro tematiza o milagre bíblico da ressurreição de Lázaro, narrando o mistério do seu retorno à vida por efeito de um cântico e um encantamento de Jesus sobre o peito de Lázaro. Jesus demorara-se, atrasara-se, não chegara a tempo de salvar Lázaro da doença que o oprimia e, como que revoltado, e um pouco sem saber o que está fazendo, ressuscita-o. Lázaro é apresentado como o grande amigo de infância de Jesus. Lázaro salvara Jesus de morrer afogado, vincando mais os laços de união entre os dois amigos e as suas famílias (José e Maria, pais de Jesus, e o avô de Lázaro, bem como os seus dois filhos e as duas irmãs, Miriam e Marta). O realismo histórico, habitual em Richard Zimler, obriga-o a grafar as festas religiosas judaicas, os topónimos, a gastronomia, a flora, algumas expressões e os nomes das personagens em hebraico, apresentando no final um elucidativo e prestimoso “Glossário”. Torna-se, assim, mais coesa a narrativa, evidenciando uma forte fidelidade aos veios históricos do tempo e do espaço enquadradores do romance.
Jesus, ainda que com sólidas ligações à transcendência, ao mundo do deus judaico, de quem se sente inspirado e com o qual dialoga, é apresentado como um mágico e curandeiro popular, como muitos que então existia no território de Israel, não como o profeta messiânico dos quatro evangelhos canónicos. No final, Lázaro, recordando a vida do amigo e o papel que nela desempenhou, escrevendo a seu neto Yaphiel, como que se indigna de ver Jesus transformado em ídolo (messiânico) de comunidades cristãs dogmáticas fanatizadas que constituirão, posteriormente, o corpo da futura igreja de Roma.
A primeira meia centena de páginas de O Evangelho Segundo Lázaro é fabulosa – a descrição (que é igualmente narração intimista de Lázaro) do milagre da ressurreição. Vale o romance todo! O que não significa menor qualidade das restantes, mas são estas primeiras páginas que marcam a vinculação amorosa e encantatória de Lázaro a Jesus, que ao amigo sacrifica vida, filhos e amizades. Lázaro é um ladrilheiro e trabalha para os poderosos de Israel e para colonos romanos (Anás, Lucius…). O sinédrio judaico não aceita a ressurreição de Lázaro e persegue-o, obrigando-o a fazer silêncio do milagre, ainda que a população o considere um abençoado e procure o seu convívio. O ambiente social e religioso é, assim, de opressão de Roma sobre Israel, Jesus conclama a multidão judaica a invadir o templo no tempo da Páscoa e, como relatado em outros evangelhos, é preso e crucificado.
Verdadeiramente, Lázaro é apresentado, no romance, como o 13º apóstolo, que, tal como Maria Madalena, recolhida em segredo após a morte de Jesus, se mantém fiel à imagem do genuíno Jesus, o verdadeiro, não o Cristo da futura igreja romana.

O Evangelho Segundo Lázaro,
Porto Editora, 456 pp, 17,70 euros.

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