segunda-feira, 29 de junho de 2020

Nadia e Dylan




     
FILOMENA MARONA BEJA












Acordou-se de madrugada muitas vezes, nesse Verão.

     Verão de 1976. Quente. Ligava-se o rádio e sabia-se dos trinta graus, ou mais, que se previam para lisboa.

     Menos, de certeza, no Canadá. Montréal. Cidade onde estavam a acontecer os Jogos Olimpicos.

     Que horas são?

     Cinco. Já de manhã, por aqui. Meia-noite, do lado de lá do Atlântico. E imagens de televisão a saltarem de fuso em fuso, a chegarem cá quase em directo.

     Uma garota, em cima de uma trave. É magra. Malha de ginástica branca, laço branco apanhando-lhe o cabelo num rabo-de-cavalo. Franja para a testa. Estica as pontas dos pés, dobra a cintura. Movimentos perfeitos. Parece que vai rodar.

     E nisto, uma guitarra. Uma voz.

Pistol shots ring out in the barroom…

… … …

     A garota parada, braços em arco por cima da cabeça. Talvez aquelas palavras venham do nada, não as percebe. Não sabe inglês.

     A voz, porém, fascinava-a.

Enter Patty Valentine from the up hall,

She sees the bartender in a pool of blood

Cries out, “My God, they killed them all!” 

     Por instantes, só a guitarra se fez ouvir. E logo a voz configurou,

Here comes the story of the Hurricane!

     A voz (voz de homem) repetiu a estrofe.

     A garota, pela primeira vez naquela língua e sem saber como, pronunciou com ele,

… … the story of the Hurricane!

     Tinha catorze anos, nessa altura.

     “O que quererá isto dizer?!…”

     Ainda imóvel em cima da trave a garota decidiu, “Hei-de saber”.

     De seguida, o nome dela nos altifalantes. Um sinal do treinador.

     Ela adiante, atrás, flectindo, ficando a prumo.

     Palmas. E, minutos depois, pontuação máxima,

     MEDALHA DE OURO!

     A guitarra voltou no intervalo, antes do pódio.

     Voltaram as palavras,

… … And so, Patty calls the cops

And they arrive on the scene

 with their red lights flashing,

In the hot New Jersey night… …

     Contavam um caso que aconcera, anos antes. E voltariam, insistentemente, até ao fim dos Jogos.

     Até lá, a garota foi fazendo pinos, fazendo arcos. Voando. Encantando.

     Quem cantava dizia que, quando se dera o tiroteio, Rubin Carter e uns amigos andavam por perto. No entanto, deveriam ter sido mais cuidadosos.

     Pois deviam,

If you are black,

You might do well

not show up on the street.

     Na sua lingua, a garota perguntou,

    “E quem é ele, Rubin Carter?…”

The champion of the world,

     Respondeu-lhe a voz. A canção.

     Fora campião de boxe. Preso por participar no tiroteio de New Jersey, disse sempre que nada tivera a ver com aquilo. Ficou na prisão quase duas décadas até que se provou: Inocente!

     Realmente, estava inocente. Assim se escrevera no poema.

 HURRICANE!

     Assim se cantara.

     Ele, o cantor, tinha então trinta e cinco anos. Era

Bob Dylan.

     Ela, a garota que nos Jogos de Montréal ganhou três medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze, chamava-se Nadia,

Nadia Comaneci.

     Nadia era romena.

     Voltou para a Roménia, depois dos Jogos Olímpios de 1976. Mas não para casa, não para Onesti. Ficou em Bucareste. Aprendeu inglês, tornou-se fluente. Aprendeu francês.

     Era, porém, difícil viver na Roménia daquela época.

 Quartos sem janelas, dias sem liberdade,

 como se ouvira em Montréal, na voz de Bob Dylan.

     Então, nas primeiras semanas de 1989, Nadia – Nadia Elena Comaneci – meteu-se a caminho. Atravessou o Inverno, a neve, o gelo. Clandestina, passou para a Hungria. Chegou à Áustria.

     Depois, a América!

     Tornou-se americana. Casou e tem um filho.

     Antes de o filho nascer, Nadia já sabia como lhe iria chamar.

     Sim. E o nome que lhe pôs foi,

                                     DYLAN! 

Sintra,

Março / 2020.

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