FILOMENA MARONA BEJA
Acordou-se de madrugada muitas vezes,
nesse Verão.
Verão de 1976. Quente. Ligava-se o rádio e
sabia-se dos trinta graus, ou mais, que se previam para lisboa.
Menos, de certeza, no Canadá. Montréal.
Cidade onde estavam a acontecer os Jogos Olimpicos.
Que horas são?
Cinco. Já de manhã, por aqui. Meia-noite,
do lado de lá do Atlântico. E imagens de televisão a saltarem de fuso em fuso,
a chegarem cá quase em directo.
Uma garota, em cima de uma trave. É magra.
Malha de ginástica branca, laço branco apanhando-lhe o cabelo num
rabo-de-cavalo. Franja para a testa. Estica as pontas dos pés, dobra a cintura.
Movimentos perfeitos. Parece que vai rodar.
E nisto, uma guitarra. Uma voz.
Pistol shots
ring out in the barroom…
… … …
A garota parada, braços em arco por cima
da cabeça. Talvez aquelas palavras venham do nada, não as percebe. Não sabe
inglês.
A voz, porém, fascinava-a.
Enter Patty
Valentine from the up hall,
She sees the
bartender in a pool of blood
Cries out,
“My God, they killed them all!”
Por instantes, só a guitarra se fez ouvir.
E logo a voz configurou,
Here comes
the story of the Hurricane!
A voz (voz de homem) repetiu a estrofe.
A garota, pela primeira vez naquela língua
e sem saber como, pronunciou com ele,
… … the
story of the Hurricane!
Tinha catorze anos, nessa altura.
“O que quererá isto dizer?!…”
Ainda imóvel em cima da trave a garota
decidiu, “Hei-de saber”.
De seguida, o nome dela nos altifalantes.
Um sinal do treinador.
Ela adiante, atrás, flectindo, ficando a
prumo.
Palmas. E, minutos depois, pontuação
máxima,
MEDALHA DE OURO!
A guitarra voltou no intervalo, antes do
pódio.
Voltaram as palavras,
… … And so,
Patty calls the cops
And they
arrive on the scene
with their red lights flashing,
In the hot
New Jersey night… …
Contavam um caso que aconcera, anos antes.
E voltariam, insistentemente, até ao fim dos Jogos.
Até lá, a garota foi fazendo pinos,
fazendo arcos. Voando. Encantando.
Quem cantava dizia que, quando se dera o
tiroteio, Rubin Carter e uns amigos andavam por perto. No entanto, deveriam ter
sido mais cuidadosos.
Pois deviam,
If you are
black,
You might do
well
not show up
on the street.
Na sua lingua, a garota perguntou,
“E quem é ele, Rubin Carter?…”
The champion
of the world,
Respondeu-lhe a voz. A canção.
Fora campião de boxe. Preso por participar
no tiroteio de New Jersey, disse sempre que nada tivera a ver com aquilo. Ficou
na prisão quase duas décadas até que se provou: Inocente!
Realmente, estava inocente. Assim se
escrevera no poema.
HURRICANE!
Assim se cantara.
Ele, o cantor, tinha então trinta e cinco
anos. Era
Bob Dylan.
Ela, a garota que nos Jogos de Montréal
ganhou três medalhas de ouro, uma de prata e outra de bronze, chamava-se Nadia,
Nadia
Comaneci.
Nadia era romena.
Voltou para a Roménia, depois dos Jogos
Olímpios de 1976. Mas não para casa, não para Onesti. Ficou em Bucareste.
Aprendeu inglês, tornou-se fluente. Aprendeu francês.
Era, porém, difícil viver na Roménia
daquela época.
Quartos sem janelas, dias sem liberdade,
como se ouvira em Montréal, na voz de Bob
Dylan.
Então, nas primeiras semanas de 1989,
Nadia – Nadia Elena Comaneci – meteu-se a caminho. Atravessou o Inverno, a
neve, o gelo. Clandestina, passou para a Hungria. Chegou à Áustria.
Depois, a América!
Tornou-se americana. Casou e tem um filho.
Antes de o filho nascer, Nadia já sabia
como lhe iria chamar.
Sim. E o nome que lhe pôs foi,
DYLAN!
Sintra,
Março /
2020.
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