-O
Povo está! Com o MFA! - gritava a multidão Estefânia abaixo naquele dia 1º de
Maio, mal refeita ainda dos eventos dos dias anteriores. Coisa nunca vista em
Sintra, mesmo pelos antigos, o povo desfilava de braço dado desfraldando faixas gigantes e apregoando a palavra liberdade,
como se houvesse que gritar sem parar para que acreditassem ser verdade.
Eufórica, Susana esperava junto ao Tirol, cravo vermelho na lapela, João vinha no cortejo, com as personalidades de Sintra e
alguns militares à cabeça. O dr. Sargo, velho republicano com residência
fixa em Sintra desde que nos anos trinta participara na revolta da Madeira,
parecia uma criança, abraçado aos amigos, já falara com o Salgado Zenha, a quem
a Junta de Salvação Nacional convidara para o novo Governo. Aqui e ali, profetas da desgraça agoiravam com os perigos do comunismo. O
Quintas, fiscal da Câmara e salazarista convicto, que dias antes do golpe
estivera num almoço da PIDE, em Queluz, agitava com os riscos da anarquia, o Spínola
estava na mão dos capitães, instigava, fora dinheiro o que os movera, depois de
orientados com as comissões em África.
O desfile, que teve início na Vila e seguiu pela Volta do Duche, terminando na Portela de Sintra, foi uma
inesquecível procissão da democracia, liturgia da nova liberdade, com crentes e
conversos celebrando aquele dia redentor. De sorriso
aberto e a vasta cabeleira ao vento, João chamou por Susana, que correu para ele, rompendo pela multidão, beijando-o e seguindo ambos no
cortejo dum país de braço dado. Dois meses depois casariam, sortuda, já tinha emprego prometido como telefonista no serviço de PBX que se previa abrir em breve.
O dr. Sargo, na cabeça do cortejo, ao
passar pelo Capote avistou o José Alfredo à conversa com o Cortêz Pinto e o
Lacerda Tavares e acenou-lhes, com olhar cúmplice e sorriso largo:
-Viva Portugal! -saudou, qual general romano voltando a Roma depois da conquista da
Gália.
-Viva! –responderam
todos em uníssono, com o Zé Alfredo a orquestrar, os olhos brilhando atrás dos óculos
de massa.
Um carro de som ecoava canções antes
só trauteadas em surdina, e agora consagrados hinos. Fanhais, Adriano, a marcha
do MFA. A democracia ganhava ícones, e os novos sons de Portugal chegavam
a uma Sintra mais dada a passeios de charrete pela Vila que a ruidosas manifestações de rua.
Mal sonharia o dr. Forjaz, que com pompa e circunstância recebera três meses
antes o ministro do Interior, Moreira Baptista, antigo presidente da
Câmara, que pouco tempo decorrido o Portugal do “a bem da Nação” se veria arquivado na prateleira da História.
Com o 25 de Abril foi designada uma
Comissão Administrativa presidida por José Alfredo, com Cortêz Pinto, Álvaro de
Carvalho e Lino Paulo entre outros, período conturbado que culminou no
afastamento agastado do grande Zé em 1976. Teimoso, ainda conseguiu inaugurar a
estátua a D. Fernando no Ramalhão e inumar as cinzas de Ferreira de Castro na
serra. Era o mínimo. As autárquicas de 1976 valeram a Câmara ao PS e a
presidência a Júlio Baptista dos Santos. Passado a embriaguez, o país construía
uma normalidade.
Recentemente reformada da Portugal Telecom, e passeando com a neta
depois do lanche no Tirol, Susana deu consigo assaltada por esses sons e
memórias já distantes. O povo, unido,
jamais será vencido! Cavernoso, lembrou-lhe cabelos compridos e calças à
boca-de-sino. -Tão ridículos que nós
éramos! –pensou, melancólica.
-Oh avó, andas ou não andas? -questionou a pequena, puxando-lhe o braço.
Subitamente desperta, apressou-se, o
441 para Fontanelas estava quase a passar.
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