Quarenta anos após a morte
do autor, a editora Cavalo de Ferro e o editor Diogo Madre Deus, em colaboração
com Ricardo A. Alves, director do Museu Ferreira de Castro, em Sintra,
decidiram dar novo alento à obra de Ferreira de Castro publicando de novo a sua
obra, há muito desaparecida dos escaparates das livrarias.
Caso o leitor queira
revisitar a obra de Ferreira de Castro, pode começar – e começa muito bem – por
um dos romances recentemente reeditados, A
Experiência, publicado em 1ª edição em 1954. Tal como Os Emigrantes ou A Selva,
A Experiência constitui, de facto,
uma notável síntese do estilo e da visão do mundo do autor.
Dividido entre duas
correntes estéticas complementares, o Naturalismo e o Realismo, ambas datadas
da primeira metade do século XX, prolongamento de experiências literárias do
fim de século anterior, Ferreira de Castro harmoniza sabiamente estas duas
vertentes literárias, conjugando-as, de um modo superior, com os ideais humanistas
da igualdade e da justiça sociais do Anarquismo, sua permanente visão política
da sociedade e do homem.
Do Naturalismo, Ferreira
de Castro recolhe os aspectos patológicos e perversos da sociedade (a
prostituição; a miséria social sem redenção; as doenças venéreas; a velhice sem
consolo nem remédio; a necessidade do roubo como modo de sobrevivência numa
sociedade que é ela toda uma extorsão do trabalho dos pobres e assalariados; os
ambientes pútridos das cadeias; os ambientes corruptores da juventude da vida
nos asilos de mendicidade…). Do Realismo, recolhe o retrato narrativo da
injustiça social, da opressão dos pobres pelos ricos, do fatalismo de uma vida
nascida em miséria contra os privilégios dos embalados em berços de ouro e a
necessidade de revolta e de luta política contra as instituições repressivas do
Estado.
Assim se compõem as
vidas de duas crianças aziagas caídas na infância num asilo: Januário, menino
que, em adulto, por amor se tornará ladrão e criminoso, e Clarinda, menina
desonrada e engravidada pelo filho da Dona Ludovina, dona da casa para onde foi
trabalhar como criada após o encerramento do asilo.
Neste, dirigido por
legado testamentário por um professor de Filosofia, tentara-se uma
“experiência” educativa fundada na liberdade e no senso de justiça das
crianças, educando-as segundo os ditames mais nobres da consciência moral.
Porém, por contrário aos costumes e aos interesses das famílias poderosas, quer
dizer, ricas, que têm no conjunto de crianças órfãs uma reserva de mão-de-obra
para o trabalho nas suas casas e quintas, o asilo foi entregue a freiras e
posteriormente fechado e restaurado pela Câmara como prisão. Januário, que em
pequeno habitara o asilo, habita agora a novel prisão.
O estilo de Ferreira de
Castro em A Experiência cruza aqueles
dois tempos diferentes, intercalando-os por via da memória das personagens que,
partindo de uma situação futura, uma nova e consumada evolução na sua vida, relatam
os acontecimentos do passado.
Em A Experiência, existe uma concepção fatalista da História, no
sentido de que estruturas sociais injustas criam e reproduzem vidas individuais
infelizes, de que não só ninguém está a salvo como, por mais boa vontade que
haja ou se tenha, não se consegue fugir. Esta concepção é sobretudo defendida
no tribunal pelo advogado Macieira, uma personagem que, convivendo à mesa com
os ricos, é, no entanto, envolvido tanto uma piedade cristã quanto por um
desejo de igualdade entre todos os cidadãos.
Nasce assim a
necessidade de uma revolução social, que “há-de vir um dia em que haverá pão
para todos” (última frase do romance).
No último capítulo, o
amor sobressai e vence a injustiça social e Clarinda confessa que esperará pela
saída da prisão de Januário para recomeçarem a vida.
Romance tecido de
miséria, perversão individual, exploração social e económica e profunda
opressão sobre quem nasce pobre.
A
Experiência,
Cavalo de Ferro, 224
pp. 13,50 euros.
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