Desde
criança Roberto se habituara àquelas rotinas domingueiras: a missa das 10 em S.
Martinho, com a avó Sara, a catequese com o padre Mateus, nariz de gavião,
sempre a ameaçar com o Inferno, o pecado de brincar nas aulas de Moral,
desfilara até de anjinho numa procissão, enfiado num fato de cetim com asas
brancas que a Ermelinda cosera. Com os anos, afastara-se da igreja, apenas
revisitada para casamentos e funerais. Era como voltar a um sítio estranho,
desconhecedor da liturgia moderna, embora fascinado pelos vitrais e pela talha
dourada, nisso se revia, mais pela mão do homem que pelos totens que os
artefactos significavam.
Passados os
quarenta, e já separado de Matilde, voltou a passar o Natal com a mãe, em
Sintra. Devota, D. Idalina não dispensou a missa matinal em S. Martinho, no dia
seguinte ao Natal, e a custo para ela arrastou Roberto e o pequeno Fábio.
Rendido ao espírito da data, Roberto lá se deixou levar, mal não faria, o
prazer dum momento com as três gerações, normalmente separadas, levou-o a ceder,
se bem que aguardasse sentado numa cadeira do fundo, contemplando os santos e
absorvendo o cheiro a flores.
Na
sacristia, a velha Almerinda trocava as jarras e ia acendendo as velas antes da
missa, num ritual de anos, desde que enviuvara. Roberto deixou-se a contemplar
o ritual dos preparativos, na Expo, onde morava, nada disto havia já, o
silêncio da igreja tranquilizou-o, logo interrompido pela necessidade de fumar
um cigarro. Tardando a missa, e deixando avó e neto sentados, saiu a ver as
vistas, quando vislumbrou o Gregório, velho colega do liceu. Há muito o não via
e correu a abraçá-lo, recordando os anos de ambos nos juniores do Sintrense:
-Gregório! Então, pá? Há quantos anos! Estás na mesma,
velho amigo! Essa barriguinha é que…- Roberto ficou feliz de o rever, já
pelos quarenta, também, há anos não se encontravam. Soube que tinha ido para
Filosofia, ele seguira Económicas, mas acabara jornalista, em Lisboa. Com o
filho viera passar o Natal, para o miúdo estar com a avó, o pai falecera há
poucos meses e sentiu-se na obrigação de passar a quadra com a mãe e o filho.
-Venham de lá esses ossos, grande Roberto! -o
Gregório, com uma cara abolachada e óculos de massa, abraçou o amigo, uma barba
rala e esbranquiçada era a principal
diferença que lhe notava, de resto estava igual, com aquele ar engatatão que
levara à certa as miúdas de Sintra nos bons anos noventa - Vais à missa? -questionou o Gregório, vendo-o à entrada de S.
Martinho.
-Que remédio!. A minha mãe teimou, e sabes, com a
idade, é melhor fazer-lhe a vontade. Para mais está com o neto. Eu, igrejas, é
como o diabo da cruz. Vim para aqui fumar um cigarro….
Gregório
sorriu, insistindo com o amigo:
-Deixaste de acreditar em Deus, Roberto? Tu, que eras
o anjinho favorito do padre Mateus? - Gregório provocou o amigo, que
dava uma passa no cigarro quase terminado. Roberto teorizou:
-Nunca leste o Christopher Hitchens? Escreveu aquele
livro "Deus não é grande – como as religiões envenenam tudo". O gajo
descrevia-se como um crente nos valores do iluminismo, e achava que o conceito
de Deus ou de um ser supremo é uma crença totalitária que destrói a liberdade
individual. Só a livre expressão e a investigação científica deveriam
substituir a religião como um meio de ensinar ética e definir a civilização humana.
Estou como ele!
Gregório fez
uma pausa, e pondo a mão no ombro do amigo retorquiu:
-Sabes, Roberto, é mais fácil meter Deus debaixo do
tapete que eliminá-lo para sempre. Porque, agnósticos, ateus ou meramente
revoltados, todos somos capturados pela ideia de Deus desde que nascemos, e
quando achamos que o podemos tratar por tu, já ele nos moldou o ser e o
comportamento, desde quando ainda nem disso tínhamos noção. Assim, negar Deus é
sempre uma atitude reactiva, nunca pró-ativa. Não se discute Deus, nega-se ou
venera-se, e esse tipo de atitude é sempre irracional. Daí que o ateísmo nunca
possa ser científico, mas apenas uma corrente de negação, uma moda, se
quiseres.
-Pessoalmente, meu velho, a minha postura é: não
acredito em Deus!. E o bosão de Higgs acabará por o “matar”, enquanto chave do
universo. Contudo, uma coisa é certa: acredito nos que acreditam. O homem é um
ser de crenças. É aliás o único animal que distingue a água da água benta, como
alguém um dia escreveu. Muitos dos que buscam respostas para as inseguranças,
refugiam-se em algo a que chamam fé, e quando os seus desejos por conjugação de
factores inesperados ocorrem, chamam a isso milagres. Acontece o mesmo nas
ortodoxias comunistas, com outros santos, altares e sacerdotes. Vê lá a Coreia do
Norte! O Freud já explicou isso tudo!
Gregório
sorriu, indulgente. Com o sino da torre da Vila a dar as dez, olhou o relógio e
apressou-se, combinando com Roberto voltarem a ver-se em breve e deixando um
comentário final:
-Será negativo acreditar e ter fé? Quando a fé
contribuir para acentuar valores como os da liberdade, livre arbítrio e
solidariedade, nada a apontar. É certo que em seu nome se matou e destruiu, em
nome de fanatismos a que se chamou fé, e intolerâncias a que se chamou
conversão. Há muita floresta para lá de certas árvores, meu velho. Dá um beijo
à tua mãe e ao teu filho! Se calhar ainda os vou ver por aí…
Voltando
para a porta da igreja, já repleta lá dentro, a missa estava prestes a começar,
Fábio, compenetrado e em silêncio, sentava-se na fila da frente com a avó.
Terminando o cigarro, Roberto deixou-se estar à entrada, em pé, mirando aquele
cenário e cheiro que até aos catorze lhe havia sido familiar. Disparando, a
música do órgão precedeu o início da missa e todos em pé saudaram a entrada dos
celebrantes. Curioso, Roberto espreitou, a ver se o padre Mateus ainda estava
na mesma, vindos da sacristia, nenhum dos três vultos se parecia com ele.
Aproximou-se um pouco e atrás dumas vestes brancas, com uma sobrepeliz verde,
reconheceu o Gregório. O velho amigo com quem palestrara momentos antes, era
afinal o pároco de S. Martinho. Aproximando-se das filas do meio, sorriu para o
antigo companheiro, que, abrindo os braços e dando início à missa, lhe piscou o
olho, cúmplice, como quando marcavam golos no velho campo do Sintrense:
-O Senhor esteja convosco! -saudou o
padre Gregório.
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