quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Telefonia sem licença

CARLOS CAMACHO

Domingos da Silva “Carrenquita”, ou “Esguicho”.

Personagem digno de referência em qualquer parte. Nunca nada nem ninguém o fez ficar sem resposta. Falava rápido e com resposta na ponta da língua.

Não o conheci, já que faleceu antes de eu nascer. Contudo é figura que vem bastas vezes à conversa quando se quer ter piada e apresentar um exemplo. Conheço os descendentes vivos, e conheci os falecidos, quase todos com a mesma resposta directa e mordaz. O falecido “Patíco” ou Pé-De-Chumbo, Francisco Rodrigues da Silva de seu nome, era o que se podia apontar como sendo uma pessoa com graça genuína, impar. Trabalhava com uma junta de bois, salvo erro herdada do pai, o Galante e o Formoso, animais para amanho das terras antes da entrada em cena dos tractores. Foram a última junta de bois de Fontanelas e Gouveia. Ainda me lembro da chamada aos animais “Ó Galante, ó Formoso”, quando queria comunicar com eles, dar-lhes alento, confortá-los.

Também Henrique Rodrigues da Silva, de alcunha entre dentes “Caricoso”, Riques na sua presença,  meu vizinho de 50 anos, porta com porta, carteiro reformado e barbeiro enquanto as pernas e a  vista o permitirem, sempre com uma conversa engraçada e um ditote apropriado. Enquanto miúdo fui quase criado por ele e pela a Ti Isabel, mulher do Ti Riques. Quando ao Domingo de manhã atravessava o caminho para casa deles, ia directo à “Casa das Barbas” a assistir à conversa dos velhotes que lá iam cortar o cabelo e fazer a barba. O meu avô Domingos Tanoeiro, o Henrique Borracho, Lourenço Maçanico, o Domingos Carrombão, falavam entre si se o tempo ia “à chuva”, “borriçava” ou “ia para Nordeste”. Com sete anitos ninguém me calava. O Ti Riques, farto de me ouvir, perguntava: “Queres ganhar 5 Tostões?” “Quero, Ti Riques.” respondia eu. “Então deixa-te estar calado”, fechava o Ti Riques.

O Domingos “Carrenquita” era assertivo e mordaz na argumentação e discurso, ninguém lhe conseguia dar troco verbal, em qualquer que fosse a situação.

No tempo da guerra em que a fome apertava, era comum os rapazes e raparigas de famílias numerosas irem “servir” para casas de famílias abastadas, aliviando a mesa da cozinha. Normalmente não ganhavam nada, apenas sopas de pão, uma manta carregada de pulgas, umas calças com fundilhos e um pontapé no cú. 

Quando um dos filhos aos 9 anos foi servir para Janas para casa do Minguitos Bordalo, este ficou espantado quando ouviu do Carrenquita: “Não é preciso dar de comer ao rapaz”.

 Ah não? inquiriu o Minguitos.

 Remata o Carrenquita “É só pôr à frente que ele come sozinho”.

Noutra ocasião andavam os fiscais à procura de quem tinha telefonia sem licença. Quem não tivesse licença a telefonia era confiscada, com direito a apreensão imediata.

Vinha o Carrenquita a caminho da Taberna da Viúva, estavam os fiscais na mercearia. Abordaram-no e perguntaram se ele tinha telefonia. Responde: “Tenho sim, senhores.” “E tem licença?” perguntaram. “Não senhores, não tenho.” retorquiu o Carrenquita.

Como é que se chama e onde mora?”- perguntaram.

Chamo-me Domingos da Silva “Carrenquita”, mais conhecido pelo “Esguicho” e moro em tal parte.” Vão andando que eu já lá vou ter”.

Assim foi. Foram andando e perguntando e lá chegaram, quase ao mesmo tempo que o dono da casa.

Ao chegar à porta perguntaram: ”Então onde é que está essa telefonia?”

Grita o Carrenquita: “Ó Maria Domingas”.

Sai de lá a Maria Domingas a ralhar com ele quanto podia: “O gado está todo para tratar, foste para a taberna, não tiraste a cama aos bois, as vacas para mugir, és um malandro, só pensas em beber vinho, ... “ .

Vira-se o Carrenquita para os fiscais: ”Aqui está a telefonia! Não tem licença, não se cala, toca alto e podem levá-la quando quiserem”.

Mas ficou...

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