FERNANDO MORAIS GOMES
Chove na
mente, é um dilúvio a alma, o fim, sempre ele espreitando, sinistra silhueta da
esperança fugidia. Encafuado poeta de café, apátrida dos tempos, sombra velha
dos espaços, em silêncio calcorreio o pontão sem gente. Como desolada está a
praia, cinzenta como o espírito, náufragos de calção circulam
aflitos por miragens. Recolho ao carro, e ao cúmplice rádio de roufenhas
melodias.
É Inverno no
país das flores, de vez foram os cravos furtados das armas, agora apontadas a
subjugados prisioneiros no país que foi de Zeca. Volta Zeca, volta de teu
túmulo, adormecida guitarra talhada no ventre dum povo culpado por sonhar. O
mar provoca, desafia a vencer, qual Gama da nau catrineta, cavalgar a onda,
ousando, e logo um atávico apelo a desistir, vencido de si, temeroso. Os
amanhãs perdem cor, pardacentos, longe, muito longe, no chamuscado purgatório
entre o pesadelo e a ilusão. No rádio do carro passa Kurt Weil, por onde o
caminho para o próximo whisky bar?
Escrevo.
Apago. Escrevo de novo. Rasgo, despótico. Que fazer? Dar o corpo à arma?
Recomeçar, com novos cravos em cano agora apontado a nós? Brancos, desta vez
querem-se brancos, alvos e puros. A Primavera fugiu… Volta, és nossa, és Sul,
és Sal, e tão longe de Portugal…
Ululantes
hordas de conformados patrulham a Cidade, raptada pelo tédio e pelo spleen,
assustam-te, confessa. Mudaram as madrugadas, antes límpidas e ledas, agora
ameaçadoras, promessa de castigos, cruéis e castradores, estivais armagedeões
relampejados. Que fazer para não despertar, para voltar ao filme onde todos são
felizes?. Ah, como é puro o cheiro do iodo!
Caneta,
papel, umas linhas esculpidas com uma cana no areal, ao lado ujm trilho
de passos na areia molhada. Empolga, a canção do CD, são os Doors,
albergue de errantes, trôpegos de futuro e sem pedras de gelo. Vamos para
Alabama, acolhidos ao whisky bar! Cheers! Lá vai a Sílvia com o caniche, a
caminho do Angra, e eu sóbrio ainda...
O Chico
emigrou, cansado de desesperar. Emigrou não, globalizou-se. O Zé Luís morre aos
poucos, licenciado em currículos e catedrático de bares. Ao Manel surpreendi
ouvindo o Zeca, cinco aguardentes durou, no esconso da casa do Gil, só
pela madrugada alcançou o nirvana, enroscado no sofá do canto.
No quiosque da praia,
anoréticos jornais vendem insegurança e medo, intranquilos, invasores, cardíaco
relato dum diário crepúsculo. Aconselhado deixar de ler jornais. Aliás, deixar
de ler em absoluto. De tão abusadas, gastaram-se as palavras e analfabetos não
descobrimos novas, entre silêncios soltamos enredos, esboçamos adjectivos,
talvez se salve o mundo aí pelo quinto gin. Limão. É o limão que tira a piada à
vida.
Deixou-me, a
Mafalda. Cansou-se. Também eu a havia deixado já, amancebado com o álcool
redentor e concubino. Amigo certo, presenteou-me com uma poética cirrose,
maleita de intelectual, é o mínimo. Não morrerei de pijama, mas de fraque, não
se vai para o outro mundo de pijama. Espero que no tal Céu haja Visa, parece
que não deixam levar dinheiro. De partida agora, posso pensar em novas
madrugadas com cravos brancos, quero cravos brancos sobre uma laje fria, fica
bem nas fotos, com Chopin em fundo, talvez o Fernando faça um poema. Campa,
sim, quero uma campa, quero alistar-me no exército das cruzes, entre memoriais
de defuntos imortais, nada do irrespirável e tórrido crematório, coisa para
frango ou Joana d'Arc.
Neste último
texto registo silenciosos gritos, cúmplices cirroses servidas com caneta de
aparo. Passou a Ângela no calçadão, trauteio baixinho uma canção de Brel, pelo
retrovisor vejo o Max no banco de trás. Grande Max, já partiu, e de fraque,
sete Outonos atrás, aguarda-me Max, vou a caminho!
É cruel, a
caneta de aparo. As palavras sangram e impiedoso o aparo mata, invasiva arma
contra palavras vãs, com tinta preta se deviam proclamar revoluções, gritar
esperanças, borrar epitáfios, apunhalar palavras errantes em confidenciais
cadernos.
É sábado.
Cristo morreu, Marx também, e eu não me sinto lá muito bem.. São cruéis os dias, e
convocam à lassidão do corpo. O homem de Nazaré morreu numa sexta. Aninhado
entre pregos de aço, ressuscitou num sábado, hora de Greenwich. Todos os dias
ressuscito para tornar a morrer. Melhor ir a mais um gin, no bar. Esfíngico, o sol
põe-se no horizonte, não serviu de nada hoje, fugido do Verão, o CD no carro
repete o Brel em looping, aguarda, Max, vou já!…. Eis-me poeta de cirroses,
servidas em copo alto, em vésperas de Libertação.
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