FERNANDO MORAIS GOMES
Filipe
Corujão acelerava a construção da casa em Janas, com a licença
prestes a caducar, obras não eram a sua praia. Médico no Amadora-Sintra,
viu-se embrenhado em desenhos e alvarás, a
burocracia fazia qualquer um envelhecer. O arquitecto da Câmara, um tal
Henriques, um caso sério para contactar, o telemóvel não atendia
e sempre que ligava, diziam estar em reunião.
As
alterações metidas no projecto já estavam executadas, mas a Câmara não aprovava. O
Plano da Orla Costeira, a Rede Natura 2000, a certificação do ruído, tudo era
preciso. O Conrado, empreiteiro de manhã e alcoólico à tarde, dizia-lhe que
avançasse a construção, a obra não podia parar, tinha outra no Algarve para
começar a seguir e se não fosse nessa altura não sabia quando poderia voltar. O
projecto das alterações tinha dois meses na Câmara, mas ainda não saíra das
mãos do arquitecto. Tentou uma reunião, telefonou para vários lados, tente mais
tarde, era a resposta, que o senhor arquitecto foi almoçar. Um fiscal passou uma
vez, a ameaçar embargo, as pesadas multas desaconselhavam aventuras.
Tentou ser
recebido pelo arquitecto, não logrando senão uma marcação para daí a três
semanas, a licença caducaria entretanto e o fiscal não deixaria de actuar.
Impossível, muito trabalho, reuniões, faça uma exposição. Passados uns dias, a
obra foi efectivamente embargada e o Conrado partiu para o Algarve, não sem
apresentar a factura, a licença na melhor das hipóteses só daí a meses,
depois de reduzida a volumetria e pagas taxas agravadas. Havia que ser
paciente, com um pouco de sorte talvez em seis meses recomeçasse a obra.
O banco do
Amadora-Sintra era uma montra violenta e desumana, rotineiro, o movimento de
ambulâncias e sirenes, a música mais escutada na noite do hospital. Filipe
estava de banco essa quarta-feira, preparado para mais um desfile de
acidentados e aflitos. Comeu uma sopa no bar e avançou para o primeiro
paciente, uma queda de motorizada, luxação, guia de marcha para o raio X. Logo
a seguir, um choque frontal no IC-16, perto do Tribunal de Sintra. A vítima
sangrava muito, o outro ocupante falecera e Filipe mandou avançar para a
observação. O doente tinha hematomas e quase não falava, angustiadas, a mulher
e filha acompanhavam-no.
Debruçando-se
sobre o sinistrado, Filipe reconheceu o arquitecto da Câmara, o Alberto
Henriques. Atordoado, o caso inspirava cuidados. Momentaneamente lembrou-se do
processo e do embargo, ir-lhe-ia custar cinco mil euros, e bastaria ter pegado
no processo uns dias antes. Depois dos exames e de medicado, recolheu ao
internamento, os bombeiros entregaram à mulher uma pasta com papéis que se
espalharam com o choque. Depois, informou a família, não corria perigo mas
tinha para dois ou três meses.
Só dois dias
depois o infausto arquitecto recuperou a consciência. Durante a visita matinal,
reconheceu o médico, o da casa de Janas, entre o silencioso e o encavacado
perguntou-lhe pelo seu estado:
-Há-de ir ao sítio, arquitecto. Com três meses de “estaleiro”…-respondeu,
distanciado e profissional, agora com o arquitecto de “baixa” é que o projecto
nunca mais seria aprovado.
Passadas
duas semanas, o arquitecto teve “alta”
e repousaria em casa, muletas três ou quatro meses e longe da Câmara. No dia em
que saiu do hospital e ainda combalido, procurou Filipe por uma enfermeira,
queria agradecer a assistência e prometer celeridade no processo. Iria
telefonar a um colega para lhe dar andamento na sua ausência, os prazos tinham de
se cumprir e era o dinheiro dos contribuintes que estava em jogo, afinal.
Minutos depois, a enfermeira voltava, o senhor doutor pedia desculpa mas não
podia receber o arquitecto, estava em reunião.
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