José Luís chegava ao Académico invariavelmente pelas oito, a
bica e o jornal, a par da cavaqueira com o Alcides, funcionário das Finanças,
era rotina diária. Do lado oposto da rua, a escola secundária ia-se enchendo de
alunos ruidosos, muitos com paragem no café antes da entrada, Bruno, calças
abaixo do rabo e boné ao lado, e Sofia, com os livros no braço, trocavam o
primeiro beijo do dia, a aula de francês era só às oito e meia. Como não há
opinião pública sem ler a opinião publicada, os clientes devoravam os
matutinos, os mais velhos com um olho na necrologia a ver quem deixara de
fumar, um dia destes calharia a deles. O Alcides, pedido o galão e a meia
torrada, comentou a manifestação dos indignados:
-Esta malta…. Se fossem trabalhar, há por aí muito campo às urtigas. Os
pais gastam o que têm e não têm para eles estudarem, mas trabalhar está quieto,
só querem é ter emprego, é o que é! - O Mário, a meses da reforma,
concordava, desde os dezassete que trabalhava no duro.
-Sabe o que é, amigo Alcides -intrometeu-se o Policarpo, dono da loja contígua, dois filhos com vinte anos na faculdade - o mal disto, é que a malta não foi educada
para lidar com contrariedades. Os putos nunca foram
tão privilegiados como agora. A gente é que é culpada, quisemos o melhor para
eles e eles acharam que tinham direito a tudo de mão beijada!
O Pedroso, fiscal da Câmara, com uma
filha psicóloga a trabalhar num call
center, sentado na mesa do meio corroborou:
-À força de querermos o melhor para
eles, demos-lhes mimos e mordomias a mais,
e eles pensaram que estava tudo garantido, saídas à noite, carta e carro com
gasolina, multibanco. Enfim, pai é pai, mas se calhar andámos mal…. Enquanto
houve dinheiro da Europa, ainda andou, mas agora, não há Salazar que valha a
isto. Olhe, é o Estado a que isto chegou!
Sofia até ali entretida a curtir com
o namorado, meteu o bedelho, espicaçada pela troca de galhardetes:
-Ó
senhor Pedroso, essa conversa é muito engraçada, mas agora, depois de as coisas
acontecerem, é que vêm todos fazer diagnósticos da treta. Se fez isso pelos
seus filhos é porque achava que era o melhor para eles, não era? Quer ver que
fomos nós que pedimos para nascer?! Sem se
pronunciar, Bruno concordava enquanto os clientes se entretinham a ver na
televisão imagens dum atentado em Bagdad, aquilo sim era um problema sério, o
nosso cantinho era sossegado, apesar de tudo. O Policarpo, deitando um olho
para a papelaria, não chegasse algum cliente, alinhava com o Pedroso, velho
amigo, ambos antigos juvenis no Sintrense:
-O
Chico Pedroso tem razão. Os vossos pais estão à rasca para pagar a prestação da
casa ou do carro, mas algum de vocês deixou de ir ao Sudoeste ou ao Rock in
Rio? Agora até pegou moda irem para o McDonals ou para o shopping fazerem as
festas de anos com os amigos, e nem sequer levam os pais, que é fatela. Mas
para dar o dinheirinho, já não é. Em casa, é o que se sabe: mal falam com os
pais, encafuados no quarto, a falar com os amigos na net, e só os conhecem para
lhes sacar dinheiro para as saídas. Nós é que somos os culpados, facilitámos
demais! E depois não sabem ouvir um não, que vem logo a chantagem emocional. O
Júlio Machado Vaz no outro dia é que dizia e com razão: pai é para educar, não
é o irmão mais velho! – um cliente entrou entretanto na papelaria e
despediu-se até à bica do almoço - Até
logo meus senhores, a ver é se vamos à Liga dos Campeões!
A aula das oito e meia estava a
começar, Sofia e Bruno, contrariado e subindo as calças que caíam, lá foram a
correr, a stôra de Francês era fixe,
pelas onze iriam ao Pingo Doce comer uma fatia de pizza, que a comida da cantina não agradava, sopa e guisado com
ervilhas, mandariam um kolmi ao Vasco
para ir ter com eles ao jardim. A D. Palmira, empregada na câmara,
chegando e apanhando o final da conversa, questionou a qualidade do ensino:
-Também
gostava de saber porque é que passam a vida a dizer que esta é a geração mais
qualificada. A minha Sónia está em Letras, e no outro dia veio-me perguntar
quem foi o D. Quixote. Bom, fiquei para morrer. No meu tempo li esses livros
todos no liceu, por obrigação é verdade, mas dá-me ideia que hoje há mais
canudos que qualificações…
Despedindo-se, antes de ir processar
mais umas penhoras, o Alcides ainda comentou já à porta:
-Esta
malta de agora pensa que manda no país como manda na escola, a bater nos
professores. Havia de ser comigo! Querem todos é tacho, trabalhar está quieto.
O pior é que um dia destes vem por aí um iluminado qualquer e eles vão atrás,
escrevam o que eu digo! Até logo, meus senhores! -e saiu, direito às
Finanças, dois miúdos na mesa três pediam meias de leite, satisfeitos por uma
aula a menos, faltara o professor de Matemática.
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