sábado, 11 de janeiro de 2014

Era uma vez na América

FERNANDO MORAIS GOMES

Entusiasmada, Elisa Valadares desembarcava em Nova Iorque decidida a procurar respostas para o enigma do velho diário. Em 1620, Antão Valadares, seu antepassado, senhor de Colares e acusado de heresia pelos Melo e Castro, aristocratas locais, tivera de fugir para Inglaterra, onde embarcara no Mayflower, em Plymouth, com destino a Cape Cod, Massachussets. Aí vivera cinco anos, até se mudar para Nova Amesterdão, hoje Nova Iorque, onde montou um negócio de ourives. Ao morrer, em 1651, deixou um diário pessoal onde misteriosamente escreveu na última página: "tudo o que deixo jaz na imaginação”. Depois da independência americana e avessos aos yankees, os descendentes de Antão voltaram a Portugal, trazendo o diário, o próspero negócio na Baixa de Lisboa devolveu aos Valadares respeito e poder, e a casa de Colares foi restituída.
Elisa, professora de Literatura, desde jovem se apaixonara pelo diário do antepassado, tirando um mês de licença, meteu-se a caminho da Big Apple, acrescentando ao prazer da viagem esse motivo especial. Não sabia o que procurar ou onde, mas o desafio era estimulante. Nova Iorque pareceu-lhe esmagadora e fervilhante. Instalada no New Yorker, perto da Times Square, dedicou os primeiros dias a absorver o ambiente, o melting pot de tendências, a cidade que nunca dorme, como certeiramente cantara o O’l Blue Eyes Sinatra. De pescoço no ar, deambulou pelas ruas, formigueiro de pessoas correndo para qualquer lado, a Greenwich Village e ao Soho achou mais à sua escala, abocanhados pela expansão de Chinatown. À noite, festim de néones e luzes, fruiu os imperdíveis espectáculos, adorou Les Miserables, escutou jazz no Blue Note. Pior era a comida, deslavada, sempre farejando um rodízio ou pizzaria, com surpresa descobriu um sítio na rua 46, onde devorou a melhor posta barrosã de Manhattan, o dono, o Joe Monteiro, quarenta anos de América, caprichou na confecção.
O velho diário apontava para que a casa de Antão ficasse num ponto a norte da cidade actual. Nova Iorque mudara muito desde 1650, era agulha em palheiro. Lembrou a tarde no Cantinho da Várzea com o Damião Ramires, colega da faculdade, tentando entender uma planta antiga da cidade. Documentos da Biblioteca de Utrech, consultados no Google, ajudaram, os indícios apontavam para a casa ser longe do rio Hudson, pois no diário Antão relatava que era uma hora até ao porto, hoje Battery Park, junto ao cais para Ellis Island.
Já em Nova Iorque, teve uma ideia: a Biblioteca do Congresso, em Washington DC, o maior acervo do mundo, onde contou com a ajuda de miss Cummings, zelosa bibliotecária e conhecedora de Pessoa. Três dias de hambúrgueres e alguns microfilmes depois, descobriu uma planta de Nova Amesterdão. A cidade era dispersa, misturando residências e lojas, uma inscrição a tinta-da-china quando se aprestava a desistir, marcava o nome “valdares” na zona norte, entre o Central Park e Harlem. Aí estava a resposta!
Munida de cópias, voltou à cidade e tentou situar a quadrícula desenhada, era a meio da cidade, depois do Lincoln Center. Sentada num banco no Central Park olhando um furtivo esquilo comendo bolotas, deu consigo a pensar no absurdo daquilo tudo, o que poderia subsistir ainda numa cidade com milhões de habitantes e com alterações abismais desde então. O verde silencioso do imenso parque contrastava com a feérica Quinta Avenida e o luxo de Park Avenue, trauteando The Sound of Silence, à memória vieram-lhe as imagens do mítico show de Simon e Garfunkel que ali tivera lugar anos antes. Era uma missão impossível, se a Rute do departamento de História Medieval soubesse, mandá-la-ia tratar-se, por certo.
Nessa noite, no Virgil’s, comeu umas baby ribs aceitáveis, um branco de Martha’s Vineyard distendeu-lhe o espírito, afinal estava em Nova Iorque e pateticamente focada num antepassado morto há centenas de anos. Já terminando o jantar, um vulto, até ali silencioso, abordou-a, o ar perdido da portuguesa despertou-lhe curiosidade. Todd Galagher, apresentou-se, professor de História em Columbia. O relato de Elisa, expansiva com o inesperado mas simpático colega, efeito do branco seco, levou-o a oferecer-se para ajudar na busca. Morava em Queens, e no dia seguinte folgava, encontrar-se-iam no lobby do New Yorker.
Todd era um jovem assistente da universidade, adepto dos Nicks, escrevera já um livro sobre Thomas Jefferson. Munidos das plantas da Biblioteca do Congresso, subiram o Central Park. Para ele era improvável existir algo, a ela a localização bastava, não tinha ilusões sobre a casa. Detiveram-se junto ao Dakota, o prédio habitado pela viúva de Lennon, Yoko Ono, a planta mandava virar para a direita, na direcção do jardim. Como crianças numa caça ao tesouro, detiveram-se junto a uns arbustos onde Todd marcou o chão com o pé. Era ali o local onde pela planta teria existido a casa. Elisa
comoveu-se, e disparou fotos para todo o lado, decifrara o diário de Antão, o judeu de Colares que um dia partira no Mayflower.
Ameaçava chover. Contente pela ajuda, Todd convidou para uma ceia no Walinski’s da rua 42, os melhores tacos da cidade, asseverou. Elisa aceitou, uma mão cúmplice no ombro selou o convite, Antão Valadares ficava definitivamente enterrado no passado. A cinquenta metros, em pleno Central Park, um desenho circular na calçada assinalava o local onde há vinte anos Todd Chapman assassinara John Lennon. Em letras grandes, e ao centro, a inscrição IMAGINE. A “imaginação” do diário de Valadares. Elisa emocionou-se, e abraçou Todd com força.
Era tempo de voltar a Lisboa, o ano lectivo começaria em breve, três dias depois teria avião, com partida do JFK, os últimos dias foram de relaxe e paixão com Todd, o prémio da viagem, afinal. Antes da partida, combinaram um encontro nas Torres Gémeas, nada como o skyline de Nova Iorque para uma despedida da Big Apple. No último dia, já a caminho do World Trade Center, onde Todd aguardava desde as nove, um saco esquecido no New Yorker fê-la voltar atrás, faltava a prenda do Jaime, uma T-Shirt do Hard Rock Café. Ao voltar do hotel, sirenes de bombeiros e um fumo espesso e intenso vinham do lado do rio, a televisão no lobby anunciava um espectacular acidente com aviões chocando contra as torres gémeas. Também para Todd, esperando no último piso com um bouquet de gladíolos, essa manhã de Setembro foi de despedida.

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