O
novo som dos Pearl Jam era brutal, dizia o Becas para o pessoal, na altura em
que o Duarte, acompanhado do pai, chegou ao bar do Diogo. Concluído o curso,
arranjara emprego a recibo verde num call
center da PT, mas mais uns dias e terminaria, não era política da empresa
renovar contratos. Liliana chegou também, acelerada, o pessoal de Jornalismo
combinara ir à manif dos indignados, já mandara convites pelo Facebook:
-Então, chavala, sábado
estamos lá no Rossio? - Duarte entusiasmara-se com a
ideia do protesto, não era a Praça Tahrir, mas havia que estar presente,
trezentos euros por mês não davam nem para o tabaco.
-Podes crer, meu, ainda agora falei com a
Xana, vamos de comboio! - Liliana mandara fazer uma T-Shirt com a frase
Fartos de recibos verdes estampada, o pessoal de esquerda andava a apalpar
terreno.
-Esta coisa das manifestações
inorgânicas é perigosa, putos! –aconselhou Artur, o pai
do Duarte, veterano doutras guerras depois de Abril - correm o risco de virem a ser acusados dum
discurso anti partidos, que o Hitler foi assim que começou, etc…
-Mas é verdade, senhor
Artur- ripostou a Liliana- é tudo conversa fiada, falam que somos a geração com mais competências
de sempre, mas afinal tiramos cursos para quê? Para ser caixas no Pingo Doce?
Viu o tipo da Jerónimo Martins, a dizer que não aparece ninguém para os talhos
deles, que ninguém quer trabalhar? O tipo passou-se, com certeza!
-Uma coisa é certa, o
que pode ser uma grande ideia pode perder-se no ruído, eles estão a fazer disto
caricatura para desvalorizar e dizer que vocês são apenas putos irreverentes…Artur
Esteves lembrava os seus tempos, outras roupas, velhas questões-E o paradoxo é que os que mandam agora são
os mesmos que há vinte anos andavam a mostrar o rabo ao ministro…É sempre
assim, já o Karl Marx dizia: a História repete-se sempre, primeiro como
tragédia, depois como farsa!
-O cota do teu pai tem
razão, puto, isto sem barulho não vai a lado nenhum, viram na Tunísia e no
Egipto? –concordou o Becas, acabando um cigarro de enrolar.
No portátil do filho, Artur leu o manifesto, lançado no Facebook:
-Não acham um pouco
utópico? Dispara em todas as direções, isto não há como ser seletivo com o
alvo! -o velho mas enxuto dirigente académico dos finais
de setenta, parecia recuar uns anos para o tempo das lutas em Direito, que não
chegara a completar. Nessa época era contra o MRPP, lembrava-se bem do Durão
Barroso, desfraldado e com caspa, e agora servidor daqueles que tanto
combatera- Além disso, faz falta um líder, um rosto…
-As caras hão-de aparecer! -argumentou
Liliana- no Maio de 68, o Cohn-Bendit também
surgiu espontaneamente, dei isso na faculdade. Não mexer uma palha é que não é
nada. Sabe quantos estágios já fiz à borla? Três, não estou interessada em
fazer disso modo de vida, assim não dá! Ou então é dar o salto, três amigas
minhas já foram….Mais cerebral, Duarte observou:
-Os comentadores
encartados menorizam a coisa, viram o Miguel Sousa Tavares na SIC? Parecia o
Medina Carreira a falar. Falam muito, mas preferem a segurança do sistema, têm
medo dos jovens. Isto é novidade, é uma coisa que não percebem, e tem-se medo
daquilo que se desconhece. É o tradicional maniqueísmo dos bons e dos maus, e
quando não identificam uns e outros nos seus quadros de arrumação mental,
rejeitam, é mais seguro….
Ao
bar chegaram entretanto o Kiko e a Mónica. Kiko arranjara um part-time na Worten mas o contrato
acabara e não seria renovado. O wireless do
bar do Diogo ajudava a mandar sem dispêndio currículos por mail, à cautela,
esconderia as habilitações, senão lá viria o velho e estafado bordão dos
estudos a mais.
-Men, vais lá sábado?
Tenho estado a fazer forward da convocatória para o pessoal, só da Lusófona vão
nove! -Duarte pedira uma imperial, o pai aceitou uma
fresquinha, também, a seguir iria para casa concluir a peça para o jornal sobre
o novo hospital de Sintra.
-Conta comigo, puto,
depois vamos beber umas jolas! -a perspectiva de
festa não estava posta de parte, Liliana juntar-se-ia à noite no Bairro.
-“Camaradas, pah”…-caricaturou
o Kiko, imitando o Jel e o Falâncio-“a
luta é alegria”. Oh Liliana, tu podias ir de ceifeira, assim uma espécie de
Catarina Eufémia com piercing, minha!
-Vai-te catar, Kiko! És mesmo nerd!
-Rapazes, atenção, que há por aí muita gente
a dizer que vocês não querem fazer nada,
só querem que vos caia tudo de mão beijada, que são os deolindos…-Artur
moderava os ânimos, ainda não dissecara bem a coisa, novato no Facebook.
-Sr. Artur, no seu tempo, quanto tempo é que
teve de esperar para arranjar emprego? O meu velho diz que dantes só não
trabalhava quem não queria…-atalhou Liliana, meio revoltada.
-Sim, nesse aspecto
está tudo muito diferente. Eu, três meses depois de deixar os estudos, já
trabalhava no Diário de Notícias, e casei aos vinte e quatro!
-Está a ver…A sua
geração fez a trampa e nós pagamos a factura, é o que é. Nada de pessoal
consigo, chefe!
-Eu entendo…-Meio
triste, Artur interiorizava os já arqueológicos anos do PREC, os companheiros
de então agora cuidando das cirroses e próstatas, vencidos da vida da era do
telemóvel, fora tudo tão rápido, da embriaguez à ressaca.
Pelas
oito horas dispersaram, numa televisão ao fundo, novos velhos do Restelo
opinavam sobre a dívida, o desemprego, os pais dos problemas aventando
soluções, agora que estavam afastados do poder. Já em casa, Artur serviu-se dum
whisky e releu um poema amarelecido de Sophia, sempre ela, pitonisa e bela:
“Revolução
isto é: descobrimento /Mundo recomeçado a partir da praia pura /Como poema a
partir da página em branco / Catarsis emergir verdade exposta /Tempo terrestre
a perguntar seu rosto”
-Duarte!
-na cozinha o filho descongelava a pizza no micro-ondas, enquanto ia debitando
mensagens para os amigos:
-Diz pai!
-Sabes quem foi Jean
Paul Sartre?
-Ya, era um cota muita
fixe, desconcertante às vezes, falámos dele uma vez, na faculdade.
Enigmático
e antes de se isolar a ouvir Doors, Artur Esteves largou uma frase sibilina do
Velho Feiticeiro: “O importante não é
aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram
de nós”
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