domingo, 16 de fevereiro de 2014

Gerações

FERNANDO MORAIS GOMES

O novo som dos Pearl Jam era brutal, dizia o Becas para o pessoal, na altura em que o Duarte, acompanhado do pai, chegou ao bar do Diogo. Concluído o curso, arranjara emprego a recibo verde num call center da PT, mas mais uns dias e terminaria, não era política da empresa renovar contratos. Liliana chegou também, acelerada, o pessoal de Jornalismo combinara ir à manif dos indignados, já mandara convites pelo Facebook:

-Então, chavala, sábado estamos lá no Rossio? - Duarte entusiasmara-se com a ideia do protesto, não era a Praça Tahrir, mas havia que estar presente, trezentos euros por mês não davam nem para o tabaco.

-Podes crer, meu, ainda agora falei com a Xana, vamos de comboio! - Liliana mandara fazer uma T-Shirt com a frase Fartos de recibos verdes estampada, o pessoal de esquerda andava a apalpar terreno.

-Esta coisa das manifestações inorgânicas é perigosa, putos! –aconselhou Artur, o pai do Duarte, veterano doutras guerras depois de Abril  - correm o risco de virem a ser acusados dum discurso anti partidos, que o Hitler foi assim que começou, etc…

-Mas é verdade, senhor Artur- ripostou a Liliana- é tudo conversa fiada, falam que somos a geração com mais competências de sempre, mas afinal tiramos cursos para quê? Para ser caixas no Pingo Doce? Viu o tipo da Jerónimo Martins, a dizer que não aparece ninguém para os talhos deles, que ninguém quer trabalhar? O tipo passou-se, com certeza!

-Uma coisa é certa, o que pode ser uma grande ideia pode perder-se no ruído, eles estão a fazer disto caricatura para desvalorizar e dizer que vocês são apenas putos irreverentes…Artur Esteves lembrava os seus tempos, outras roupas, velhas questões-E o paradoxo é que os que mandam agora são os mesmos que há vinte anos andavam a mostrar o rabo ao ministro…É sempre assim, já o Karl Marx dizia: a História repete-se sempre, primeiro como tragédia, depois como farsa!

-O cota do teu pai tem razão, puto, isto sem barulho não vai a lado nenhum, viram na Tunísia e no Egipto? –concordou o Becas, acabando um cigarro de enrolar. No portátil do filho, Artur leu o manifesto, lançado no Facebook:

-Não acham um pouco utópico? Dispara em todas as direções, isto não há como ser seletivo com o alvo! -o velho mas enxuto dirigente académico dos finais de setenta, parecia recuar uns anos para o tempo das lutas em Direito, que não chegara a completar. Nessa época era contra o MRPP, lembrava-se bem do Durão Barroso, desfraldado e com caspa, e agora servidor daqueles que tanto combatera- Além disso, faz falta um líder, um rosto…

-As caras hão-de aparecer! -argumentou Liliana- no Maio de 68, o Cohn-Bendit também surgiu espontaneamente, dei isso na faculdade. Não mexer uma palha é que não é nada. Sabe quantos estágios já fiz à borla? Três, não estou interessada em fazer disso modo de vida, assim não dá! Ou então é dar o salto, três amigas minhas já foram….Mais cerebral, Duarte observou:

-Os comentadores encartados menorizam a coisa, viram o Miguel Sousa Tavares na SIC? Parecia o Medina Carreira a falar. Falam muito, mas preferem a segurança do sistema, têm medo dos jovens. Isto é novidade, é uma coisa que não percebem, e tem-se medo daquilo que se desconhece. É o tradicional maniqueísmo dos bons e dos maus, e quando não identificam uns e outros nos seus quadros de arrumação mental, rejeitam, é mais seguro….

Ao bar chegaram entretanto o Kiko e a Mónica. Kiko arranjara um part-time na Worten mas o contrato acabara e não seria renovado. O wireless do bar do Diogo ajudava a mandar sem dispêndio currículos por mail, à cautela, esconderia as habilitações, senão lá viria o velho e estafado bordão dos estudos a mais.

-Men, vais lá sábado? Tenho estado a fazer forward da convocatória para o pessoal, só da Lusófona vão nove! -Duarte pedira uma imperial, o pai aceitou uma fresquinha, também, a seguir iria para casa concluir a peça para o jornal sobre o novo hospital de Sintra.

-Conta comigo, puto, depois vamos beber umas jolas! -a perspectiva de festa não estava posta de parte, Liliana juntar-se-ia à noite no Bairro.

-“Camaradas, pah”…-caricaturou o Kiko, imitando o Jel e o Falâncio-“a luta é alegria”. Oh Liliana, tu podias ir de ceifeira, assim uma espécie de Catarina Eufémia com piercing, minha!

-Vai-te catar, Kiko! És mesmo nerd!

-Rapazes, atenção, que há por aí muita gente a dizer que vocês  não querem fazer nada, só querem que vos caia tudo de mão beijada, que são os deolindos…-Artur moderava os ânimos, ainda não dissecara bem a coisa, novato no Facebook.

-Sr. Artur, no seu tempo, quanto tempo é que teve de esperar para arranjar emprego? O meu velho diz que dantes só não trabalhava quem não queria…-atalhou Liliana, meio revoltada.

-Sim, nesse aspecto está tudo muito diferente. Eu, três meses depois de deixar os estudos, já trabalhava no Diário de Notícias, e casei aos vinte e quatro!

-Está a ver…A sua geração fez a trampa e nós pagamos a factura, é o que é. Nada de pessoal consigo, chefe!

-Eu entendo…-Meio triste, Artur interiorizava os já arqueológicos anos do PREC, os companheiros de então agora cuidando das cirroses e próstatas, vencidos da vida da era do telemóvel, fora tudo tão rápido, da embriaguez à ressaca.

Pelas oito horas dispersaram, numa televisão ao fundo, novos velhos do Restelo opinavam sobre a dívida, o desemprego, os pais dos problemas aventando soluções, agora que estavam afastados do poder. Já em casa, Artur serviu-se dum whisky e releu um poema amarelecido de Sophia, sempre ela, pitonisa e bela:

“Revolução isto é: descobrimento /Mundo recomeçado a partir da praia pura /Como poema a partir da página em branco / Catarsis emergir verdade exposta /Tempo terrestre a perguntar seu rosto”

-Duarte! -na cozinha o filho descongelava a pizza no micro-ondas, enquanto ia debitando mensagens para os amigos:

-Diz pai!

-Sabes quem foi Jean Paul Sartre?

-Ya, era um cota muita fixe, desconcertante às vezes, falámos dele uma vez, na faculdade.

Enigmático e antes de se isolar a ouvir Doors, Artur Esteves largou uma frase sibilina do Velho Feiticeiro: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”

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