O Miguel
Real é um escritor por muitos laços ligado a Sintra. Acha que há um sentido
trágico dominante em Sintra ou serão apenas exacerbações românticas derivadas
dos mitos que a ela se associam, hoje em retorno acentuado?
Não, não
existe sentido trágico ligado a Sintra. Muito pelo contrário. Sintra evoca um
espírito poético, como João Rodil o prova em Sintra. Serra, Luas e
Literatura (1995), identificando-se com o corpo literário criado pelos
poetas e escritores que por aqui passaram. Um espírito poético que apenas pode
ser comungado poeticamente. O corpo de que esta alma é unidade é,
indubitavelmente, a minerabilidade esmagante da serra: a Serra enche, deleita e
rejubila a nossos olhos, sacia os nossos sentidos, e sempre que atingimos o
cume da Serra de novo nos confrontamos com dois gigantes cósmicos: o azul do
mar e o azul do céu, ambos cruzados num indefinível recorde. Face a esta tripla
paradoxal maravilha, constatamos que só pode ser comungada pelo coração do
sintrense através de uma forma que a sublime, uma alma que a transfigure
esteticamente, um espírito que lhe corresponda em grandeza e excelência - e
esse é o espírito poético.
Costuma
dizer-se que depois de Sartre a pós modernidade colocou os intelectuais numa
posição descentrada. O que é ser intelectual hoje? Se o intelectual nasceu com
a Cidade, hoje, com a globalização terá virado funcionário? O intelectual é um
"escriba obscuro" como escreveu Foucault?
Peço desculpa,
mas não. O intelectual, como Saramago, Lobo Antunes, Boaventura de Sousa
Santos, Manuel Maria Carrilho. Gonçalo M. Tavares, Viriato
Soromenho-Marques..., continua empenhado em transformar o mundo. Porém, não o
faz já usando uma voz política, como até à primeira metade do século XX, mas
uma voz estritamente cultural. A política perdeu o fulgor de transformador do
mundo, existe apenas como regedor da existência. A cultura e a ciência,
diferentemente do passado, penetram hoje nos costumes da população, exprimindo
os desejos de mudança e o horizonte da transformação social. O político rege, o
intelectual, pela sua obra, anuncia o novo mundo. O político rege, o cientista
transforma directamente o mundo, impondo novos objectos que modelam uma nova existência
social, e o intelectual abre todos os dias novos horizontes ao pensamento.
Qual a
sua obra mais conseguida? Já se zangou por ter escrito alguma delas?
No campo do
ensaio, Introdução à Cultura Portuguesa, sem dúvida, já com tradução
para castelhano na editora Planeta e com lançamento na Feira do Livro de
Bogotá, a segunda mais importante da América Latina. Também me orgulho bastante
da série "Nova Teoria", que publico na D. Quixote. No campo do
romance, tenho três romances felizes: Memórias de Branca Dias, já em 4ª
edição; A Voz da Terra, sobre o terramoto de 1755, também em 4ª edição,
e O Feitiço da Índia, já em 2ª edição. Sim, recuso-me a reeditar um
romance há muito tempo esgotado: A Ministra. Foi escrito com raiva e
hoje não gosto nada dele.
Pode
dizer-se que o escritor escreve sempre o mesmo livro e toda a obra é
autobiográfica?
Sim, há traços
idiossincráticos identificadores do autor em toda a sua obra: o privilégio
atribuído à personalidade de certas personagens recorrentes; o privilégio a
certas construções frásicas, a certas palavras, um estilo invariável, uma
descrição semelhante do tempo atmosférico, do ambiente natural, dos conflitos
sociais... Por isso, Saramago dizia justamente que todo o romance era em parte
autobiográfico, não no sentido de reflectir directamente a personalidade do
autor ou no sentido de narrar a sua vida, mas no sentido de espelhar as grandes
preocupações existenciais do autor. Desde Aparição (1959) a até à sua
morte, a escrita de Vergílio Ferreira é sempre tocada pela amplidão metafísica,
e toda a obra de José Cardoso Pires é sempre realista. É neste sentido - e só
neste - que se pode dizer que o autor está sempre a escrever o mesmo livro.
O que
anda a escrever, e que projectos tem para o futuro imediato?
Penso que os
quatro livros que sairão em 2014 confirmam alguma maturidade de escrita,
conseguida por uma intensa experiência estética desde há 10 anos: três ensaios
(Nova Teoria do Sebastianismo, na D. Quixote; O
Futuro da Religião, na Nova Vega, e Manifesto em Defesa de uma Morte
Livre, na Relógio d'Água). No final do ano, sairá um romance sobre uma
utopia (2384) como homenagem a Thomas More, criador deste termo há
quinhentos anos (1516).
Como vê a
cena cultural em Sintra e o que poderá ser feito para a dinamizar?
Com a regência
do PSD, a cena cultural sintrense diminuiu fortemente se tivermos em conta os
tempos áureos de Edite Estrela. Foram extintos os grandes congressos sobre
Romantismo, Identidade Nacional, Eça de Queirós..., desapareceram imensas
iniciativas, como os "Dias da Lusofonia" (salvo erro assim era
designado), que tinham colocado Sintra no mapa cultural do país. A revista
erudita Vária Escrita, que era o cartão de apresentação de Sintra para o
mundo universitário, também desapareceu. Ficou a Regaleira e o esoterismo, o
Olga Cadaval e as grandes produções que passam, distraem mas pouco formam. O
turismo na serra profissionalizou-se no tempo do PSD, e pouco mais para além do
clássico: o teatro e a CT de Sintra, o Festival de Sintra. Muito, muito mais
poderá ser feito. Tenho esperança, sinceramente nesta nova vereação, sobretudo
na longa experiência autárquica de Rui Pereira, o vereador que esteve na base
do lançamento de quase todos os grupos de teatro em Sintra.
O que
pensa que procura o leitor quando busca uma obra literária? O leitor é generoso
ou é um ser distante e que tem de ser conquistado?
O leitor nunca é estúpido e move-se entre o apelo a uma literatura séria, que o force a pensar e a criticar as certezas instituídas pela sociedade, e o apelo a uma literatura de distracção que o liberte e o evada de uma vida diária difícil. Um bom romancista, como Saramago ou Eça de Queirós, sabe conciliar os dois pólos estéticos. Temos hoje dois óptimos exemplos em Sintra com a escrita de Sérgio Luís de Carvalho no romance histórico e de Ricardo Adolfo no retrato de uma nova mentalidade emergente da linha de Sintra.
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