Nos passados dias 3 e 4, em Seteais,
pudemos assistir ao primeiro dos quatro ciclos de conferências que integram o Colóquio Nacional Raul Lino em Sintra,
neste ano de 2014 em que, simultaneamente, passam quatro décadas sobre o seu
falecimento e se comemora o centenário da construção da Casa do Cipreste.
Desde já, muito apraz registar como estão de parabéns tanto o
IADE, organizador da iniciativa, bem como a Câmara Municipal de Sintra, Hotel
Palácio de Seteais, Colares Editora e DCV (Discovery, Taste & Culture), entidades
cujos esforços se conjugaram no sentido de que se registasse o assinalável
sucesso que todos os participantes tiveram oportunidade de testemunhar.
Ao privilégio da partilha de excelentes comunicações proferidas,
no primeiro dia por José Augusto França, João Santa Rita e José Cardim Ribeiro
e, na manhã seguinte, a cargo de Maria Helena Maia, José Manuel Martins
Carneiro, Miguel Real e Michel Toussaint, suceder-se-ia, pela tardinha, o
fascínio de uma visita à Casa do Cipreste.
Concebido que foi com a evidente pertinência da lógica,
depois do lugar à palavra esclarecedora, no registo de historiadores,
arquitectos e filósofos, o programa do Colóquio encerraria pela mão de Manuel
Gandra e Martinho Pimentel. Foram guias absolutamente inexcedíveis, introduzindo
e esclarecendo aspectos primordiais daquela especialíssima obra de mestre Raul
Lino, lugar geométrico de um saber ali plasmado, livro aberto a iniciados ao
qual também os profanos podem aceder se, como foi o caso, forem devidamente
acompanhados…
Permitam, contudo, que ainda regresse ao Palácio de Seteais.
Na sala Gildemeester,
de tal modo foram densos os trabalhos que, apesar de alguns desvios de horário, dificilmente haveria
lugar para fugas de atenção. O cerne
do interesse comum era de tal ordem impositivo e determinante que, até nos
intervalos das comunicações, as conversas continuavam a propósito do
excepcional artista e homem cuja obra e memória ali nos congregava.
Inevitável seria que, referidos por alguns oradores, certos
aspectos da actividade de Raul Lino afins da defesa, preservação e recuperação
do património natural e edificado, também se impusessem, como plataforma
propícia à lembrança de casos que suscitaram e determinaram alguma da
intervenção cívica que, em Sintra, com alguns amigos presentes, foi protagonizada
ao longo dos anos.
Naturalmente, num contexto de aparente serenidade e não
menor amenidade, o próprio lugar de Seteais teria de vir à baila, ele que foi
palco de inusitada polémica em certas ocasiões no passado longínquo e mais
recente. Se, por exemplo, a luta pela manutenção do estatuto de acesso público
ao terreiro e belvedere é já coisa secular – remontando ao ano de 1800, com episódios que o saudoso
José Alfredo tão bem documentou – nos nossos dias, já em pleno século vinte e
um, também não temos razão de queixa…
Pois bem, em 2005, a título de exemplo e sem ser exaustivo, lembraria
o casamento da filha do banqueiro Ricardo Espírito Santo Salgado, presidente do
grupo que inclui a empresa concessionária da unidade hoteleira, altura em que
foi erguida uma tenda cuja estrutura danificou o relvado por muitos meses.
Posteriormente, durante o período de obras de beneficiação no interior do
Palácio, alegando questões de segurança, aconteceu o intempestivo encerramento
do recinto exterior, chegando ao ponto de ser impedido o acesso ao então
Presidente da Junta de Freguesia de São Pedro…
“(…) Ora,
é justamente o amor, um certo amor, que torna a Arte e a Natureza afins entre
si. Pode-se amar uma paisagem, uma árvore com o mesmo amor com que se ama uma
obra de Arte ou uma antiguidade, podem-se amar as flores do campo ou do jardim,
de mistura com estátuas ou monumentos; mas não se pode amar um motor Diesel, o
cilindro ou a biela de uma máquina, não se pode amar uma chave inglesa ou o
martelo-pilão. E, se é possível amar-se qualquer destas últimas coisas, pelo
menos há uma diferença entre aqueles dois amores. E são as pequenas diferenças
que tornam a vida gostosa e merecedora de ser vivida (…)” Raul Lino,
Conferência na Sociedade de Geografia de Lisboa, 16 de Janeiro de 1957.
Sintomático que, sensivelmente na mesma altura, tenha sido
destruído o tanque da quinta, peça essencial de um agradável dispositivo de
lazer, com conversadeiras, caramanchão e todos os ingredientes propícios ao
desfrute do local. Ali, com o beneplácito do IGESPAR, as paredes do tanque
foram aproveitadas para a construção de prosaica casa de máquinas, no exterior
da qual, hoje em dia, existe uma ordinária esterqueira, em total desrespeito daquilo
que soe designar-se como espírito do
lugar, envergonhando o hoteleiro e que, inevitavelmente, tanto ofende os
sintrenses. Claro que urge pôr cobro à situação.
Fiz eu alusão ao espírito do lugar? Então como classificar
aquilo que, do outro lado da estrada, continua a suceder? Naturalmente, me
refiro à construção [escandalosamente licenciada e enquadrada como
«reconstrução»…] da mansão de Miguel Pais do Amaral. Com uma área inusitada, a
implantação da grande residência, que provocou vultuosa manobra de
terraplanagem, ergue-se em cota de terreno acima da do monumento fronteiro que
é o próprio Palácio de Seteais. Enfim, um escândalo inominável!
Muitos outros são os items de controvérsia que,
oportunamente, a respeito destes casos de Seteais, apresentei em vários
artigos, nas páginas do Jornal de
Sintra. Tive e tenho cúmplices nestas lides, gente como Fernando Morais
Gomes, João Faria, Fernando Castelo, e homens da imprensa regional e nacional
como Luís Galrão, Paulo Parracho ou Luis Filipe Sebastião e João Carlos
Sebastião, a quem Sintra muito deve pela denúncia de situações que não podem
permanecer ignorados ou na semiobscuridade dos gabinetes onde estagnam impunes.
Compreendam que, não tivesse eu subscrito estas linhas, e não
me sentiria digno da memória de Raul Lino que fui celebrar a Seteais, numa
saudade mesclada de memórias quero continuar a saber honrar e a ensinar aos
meus netos.
[João Cachado escreve de acordo com a antiga ortografia]
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