Executado o solicitado,
Manini e Carvalho Monteiro faziam a primeira visita ao poço, uma impressiva
galeria com escadaria em espiral sustentada por colunas esculpidas.
-Signore
Monteiro, está como pediu, nove patamares separados por lanços de quinze
degraus cada, e referências à Divina Comédia. Lá em baixo mandei embutir em
mármore a rosa-dos-ventos sobre a cruz templária
-ia explicando o italiano, cenógrafo de óperas metido a arquitecto.
-Perfeito!
-soltou
o velho Monteiro, tirando a cartola e escorrendo suor, esse era o seu emblema
heráldico e indicativo da Ordem Rosa-Cruz, tudo estudara para dar cunho
simbólico à Quinta da Regaleira, onde pedras de Ança chegavam às toneladas e
canteiros trabalhavam sem parar há quatro anos. Com ar enigmático, deixou
escapar um comentário:
-Sabe
que é impossível a alguém elevar-se para a luz sem antes descer ao inferno? Só
o afrontar do Mal em nome do Bem permite o acesso aos estados superiores do
Ser!
Entrados no poço, o eco
ampliou como um rugido a tonitruante voz do magnata. O labiríntico poço estava
ligado por várias galerias e túneis a outros pontos da quinta, a Entrada dos
Guardiães, o Lago da Cascata e o Poço Imperfeito, os morcegos deambulavam,
guardiões do escuro e do desassossego. Pela primeira vez iria subir a
escadaria, qual ritual, secreto e cadenciado, começando pela torre subterrânea.
Antes de subir, levantou um braço e abordou Manini:
-Este
era já o Espaço, é agora o Tempo de abandonar o velho e enfrentar o novo. A
cada entrada, um novo nascimento, uma nova renovação…
-Como
vê, sente-se a mão do Grande Arquitecto…-ironizou Manini,
retorcendo o bigode.
-Neste
caso, você, meu caro! -retorquiu o ricaço, espetando uma
palmada nas costas do italiano.
-Agora
repare: saindo da escada em espiral, o elemento aquático ganha novo esplendor,
previ uma passagem sobre o lago por cima de quinze pedras ziguezagueantes -com as mãos abertas e gestos largos, Manini explicava o plano, qual mapa do
tesouro, Monteiro tomava atenção aos pormenores, enquanto dois cisnes brancos
nadavam no lago. Passaram de seguida por uma íbis egípcia, logo surgindo a
estátua de um leão encravada entre três bancos:
-Este leão simboliza os reis de Chipre, familiares dos Lusignan, seus
antepassados. Eu mesmo o desenhei!
-Podia
ser maior…E agora?
-Agora
sobe-se a torre, em direcção à cripta.
A escada em caracol
remetia-os para um mundo de sombras que a megalomania do velho bibliófilo
idealizara, uma hiperbólica teia acabada de ser tecida. Passando ao palácio,
para onde a biblioteca de Lisboa estava a ser transferida, Monteiro fez
questão que Manini observasse um livro adquirido recentemente:
-Conhece
este livro? -um largo volume encadernado continha a
cópia de um manuscrito, Fama
Fraternitatis. Abrindo-o desfiou:
-Aqui está a verdadeira história dos rosa cruzes. Sabia que o
Rosenkrautz era descendente de uma família alemã que abraçava as doutrinas
albigenses? Toda a família foi condenada à morte por Conrad de Turíngia,
excepto ele. Com cinco anos foi levado secretamente para um mosteiro onde
conheceu os quatro Irmãos que mais tarde fundariam a Irmandade Rosa Cruz.
Manini ouvia em
silêncio, mais interessado num magnífico relógio que dois empregados acabavam
de trazer com luvas brancas. O milionário reparou, e foi mostrar-lhe o troféu:
-Já
tinha visto o meu Leroy O1? Esteve na exposição de Paris, tem um mecanismo de
quatro níveis e mais de novecentas peças…Custou-me vinte mil francos, um
capricho! -e riu como uma criança com um brinquedo de
estimação, o mundo de Carvalho Monteiro era sem dúvida outro.
De seguida, completaram
o périplo subindo ao Patamar dos Deuses, a água da serra-mãe corria cristalina
na fonte dos íbis, detendo-se na Entrada dos Guardiões, imponente e altiva. Na
gruta de Leda, Monteiro colocou a mão sobre o cisne, também ele Zeus do seu império
terreno, e suspirou, enrolando a barba:
-Quem
nunca demandar o interior da terra nunca encontrará a verdade oculta! Aqui
semearei a verdade, caro Manini!
Nesse final de 1909
Carvalho Monteiro tinha o seu Olimpo concluído, deus entre os deuses, sortilégio
das trevas, a torre, ímpar, rasgando o céu triunfante. Nos anos seguintes, o
caldeirão do Espírito fervilhou nas entranhas da terra-gruta, guardando
segredos que só o génio de alguns podia desvendar. Até que uma noite, findava
já 1920, o Druida partiu para a Grande Viagem, etéreo descendo ao poço, etapa
por etapa, das Trevas á Luz, ecoando ao longe o grasnar dos cisnes brancos,
refletidos pela Lua-Prata protectora do Jardim.
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