sexta-feira, 18 de abril de 2014

O druida da Regaleira

FERNANDO MORAIS GOMES

Executado o solicitado, Manini e Carvalho Monteiro faziam a primeira visita ao poço, uma impressiva galeria com escadaria em espiral sustentada por colunas esculpidas.

-Signore Monteiro, está como pediu, nove patamares separados por lanços de quinze degraus cada, e referências à Divina Comédia. Lá em baixo mandei embutir em mármore a rosa-dos-ventos sobre a cruz templária -ia explicando o italiano, cenógrafo de óperas metido a arquitecto.

-Perfeito! -soltou o velho Monteiro, tirando a cartola e escorrendo suor, esse era o seu emblema heráldico e indicativo da Ordem Rosa-Cruz, tudo estudara para dar cunho simbólico à Quinta da Regaleira, onde pedras de Ança chegavam às toneladas e canteiros trabalhavam sem parar há quatro anos. Com ar enigmático, deixou escapar um comentário:

-Sabe que é impossível a alguém elevar-se para a luz sem antes descer ao inferno? Só o afrontar do Mal em nome do Bem permite o acesso aos estados superiores do Ser!

Entrados no poço, o eco ampliou como um rugido a tonitruante voz do magnata. O labiríntico poço estava ligado por várias galerias e túneis a outros pontos da quinta, a Entrada dos Guardiães, o Lago da Cascata e o Poço Imperfeito, os morcegos deambulavam, guardiões do escuro e do desassossego. Pela primeira vez iria subir a escadaria, qual ritual, secreto e cadenciado, começando pela torre subterrânea. Antes de subir, levantou um braço e abordou Manini:

-Este era já o Espaço, é agora o Tempo de abandonar o velho e enfrentar o novo. A cada entrada, um novo nascimento, uma nova renovação…

-Como vê, sente-se a mão do Grande Arquitecto…-ironizou Manini, retorcendo o bigode.

-Neste caso, você, meu caro! -retorquiu o ricaço, espetando uma palmada nas costas do italiano.

-Agora repare: saindo da escada em espiral, o elemento aquático ganha novo esplendor, previ uma passagem sobre o lago por cima de quinze pedras ziguezagueantes -com as mãos abertas e gestos largos, Manini explicava o plano, qual mapa do tesouro, Monteiro tomava atenção aos pormenores, enquanto dois cisnes brancos nadavam no lago. Passaram de seguida por uma íbis egípcia, logo surgindo a estátua de um leão encravada entre três bancos:

-Este leão simboliza os reis de Chipre, familiares dos Lusignan, seus antepassados. Eu mesmo o desenhei!

-Podia ser maior…E agora?

-Agora sobe-se a torre, em direcção à cripta.

A escada em caracol remetia-os para um mundo de sombras que a megalomania do velho bibliófilo idealizara, uma hiperbólica teia acabada de ser tecida. Passando ao palácio, para onde a biblioteca de Lisboa estava a ser transferida, Monteiro fez questão que Manini observasse um livro adquirido recentemente:

-Conhece este livro? -um largo volume encadernado continha a cópia de um manuscrito, Fama Fraternitatis. Abrindo-o desfiou:

-Aqui está a verdadeira história dos rosa cruzes. Sabia que o Rosenkrautz era descendente de uma família alemã que abraçava as doutrinas albigenses? Toda a família foi condenada à morte por Conrad de Turíngia, excepto ele. Com cinco anos foi levado secretamente para um mosteiro onde conheceu os quatro Irmãos que mais tarde fundariam a Irmandade Rosa Cruz.

Manini ouvia em silêncio, mais interessado num magnífico relógio que dois empregados acabavam de trazer com luvas brancas. O milionário reparou, e foi mostrar-lhe o troféu:

-Já tinha visto o meu Leroy O1? Esteve na exposição de Paris, tem um mecanismo de quatro níveis e mais de novecentas peças…Custou-me vinte mil francos, um capricho! -e riu como uma criança com um brinquedo de estimação, o mundo de Carvalho Monteiro era sem dúvida outro.

De seguida, completaram o périplo subindo ao Patamar dos Deuses, a água da serra-mãe corria cristalina na fonte dos íbis, detendo-se na Entrada dos Guardiões, imponente e altiva. Na gruta de Leda, Monteiro colocou a mão sobre o cisne, também ele Zeus do seu império terreno, e suspirou, enrolando a barba:

-Quem nunca demandar o interior da terra nunca encontrará a verdade oculta! Aqui semearei a verdade, caro Manini!

Nesse final de 1909 Carvalho Monteiro tinha o seu Olimpo concluído, deus entre os deuses, sortilégio das trevas, a torre, ímpar, rasgando o céu triunfante. Nos anos seguintes, o caldeirão do Espírito fervilhou nas entranhas da terra-gruta, guardando segredos que só o génio de alguns podia desvendar. Até que uma noite, findava já 1920, o Druida partiu para a Grande Viagem, etéreo descendo ao poço, etapa por etapa, das Trevas á Luz, ecoando ao longe o grasnar dos cisnes brancos, refletidos pela Lua-Prata protectora do Jardim.

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