Escritor, tradutor, crítico literário, Jorge Telles de Menezes é uma figura de referência no panorama da cultura em Sintra,e Fernando Morais Gomes ouviu-o em tempos sobre temas e reflexões da vida contemporânea.Leia a lúcida e elucidada entrevista que nos concedeu.
FERNANDO MORAIS GOMES (FMG) -
O Jorge Telles Menezes é uma figura da vida cultural portuguesa ligada a
Sintra pela poesia e pelo teatro. Como vê o seu contributo nessa área e
o que há de busca interior na sua obra poética?
JORGE TELLES DE MENEZES (JTM)-Desenraizei-me
de vários lugares, desde logo do Porto, onde nasci, por força da vida,
que é uma corrente mais forte do que cada um de nós individualmente.
Durante muitos anos ambicionei aprender a ser humano, simplesmente, a
tolerar o outro na sua diferença, começando obviamente por me tolerar a
mim mesmo. Como poderemos aceitar o Outro se primeiro não nos aceitarmos
como nós próprios somos? Aprendizagem a mais difícil, ainda não
concluída, talvez nunca o seja. Acreditei durante muito tempo que o ser
universal seria aquele nascido nas megacidades, o ser kantiano, o da
república universal. Enganei-me, o cosmopolita verdadeiro encontra-se
hoje fora das cidades, veio de todas as cidades, é verdade, mas como um
desiludido da sua desumanidade, da sua maquinaria social trituradora do
indivíduo, do “progresso” técnico. Ele busca raízes nas pequenas aldeias
históricas, volta-se para a permacultura, a agricultura biológica, e
reencontra antigos saberes e ritos não inteiramente perdidos. Foi assim
que escolhi Sintra, ou fui escolhido pelas suas forças telúricas e
míticas para aqui me ressocializar, para aprender a aceitar esse enigma
doloroso do ser português, porque ser português é um verdadeiro problema
para quem o é, pertencemos ao clube das «pátrias difíceis». O meu
melhor contributo nessa área é o meu olhar crítico que quer apreender
uma realidade em mutação, a de uma identidade local que se esforça por
se universalizar sem perder as suas raízes e a de um cosmopolitismo de
postal ilustrado que ainda sonha com idílios rústicos que compensem os
labirínticos caminhos da alma do homem ainda moderno.Num país
“normalizado” e “ocidentalizado” com tanta violência, basta lembrar os
inúmeros sacrifícios ao “deus” automóvel nas nossas estradas nesta época
supostamente de paz, o poeta virou-se de novo para o seu interior,
busca horizontes mais amenos para os seus concidadãos, o poeta hoje,
como o filósofo, está obrigado a essa busca interior de valores que
enformem uma sociedade humanizada, em que a técnica não seja um
obstáculo à livre expressão da poesia.
FMG-Há
um sentido trágico em Sintra ou exacerbações românticas derivadas dos
mitos que a ela se associam, hoje em retorno acentuado?
JTM-A
questão tem consequências epistemológicas ao nível da teoria literária.
O romantismo, defendo essa corrente teórica, é uma manifestação
essencial da alma humana, ele não se limita a ser um período do
pensamento estético e literário datável nas nossas histórias das ideias,
ele é um estado de espírito permanente e constitutivo do homem, como o
classicismo, ou o barroco também são constitutivos. Depois, cada
indivíduo, conforme suas propensões e o tempo que lhe foi dado viver
será mais “romântico”, mais “clássico” ou mais “barroco”. A natureza em
Sintra é uma antiquíssima construção cultural, como nos revela por
exemplo a filósofa Dalila Pereira da Costa em “Da Serpente à Imaculada”.
Nos tempos pré-indo-europeus era cultuada aqui a Grande Deusa, o
matriarcado subsistia como aliás na Galiza, na Bretanha francesa e na
Grã-Bretanha. Há toda uma raiz cultural e religiosa comum aos povos da
orla atlântica que assenta na adoração da Lua, na mulher como
sacerdotisa, e eu creio que este legado atrairá sempre para Sintra
aqueles que de alguma forma não se revêem nas tradições patriarcais
semitas e germânicas, e hoje também os que se desencantaram com o
terrível estado de degradação ambiental a que a espécie humana sujeitou o
planeta. Há por isso boas razões para crermos que Sintra será sempre um
oásis para os românticos de todas as épocas. Mas nem todos os
românticos entenderam Sintra, os seus mistérios remotos e o seu
telurismo lunar, como foi o caso paradigmático de um Byron ou de um
Southey, eles simplesmente não entenderam (nem tinham conhecimentos para
isso) o antiquíssimo constructo cultural chamado Sintra. Somos nós,
portugueses, quem melhor poderá demonstrar ao mundo essa natureza tão
feminina, ctónica e lunar de Sintra, hoje cada vez mais actual com o
findar do Modernismo.
FMG-Quais são os seus autores de referência? E aqueles onde pode estar a luz no poetar dos nossos dias?
JTM-Os
meus autores de referência não são todos os que de algum modo me
influenciaram, alguns praticamente desconhecidos. Pelo contrário, há
autores que me fascinam, que são uma referência para mim por diversas
razões, mas que não me influenciaram de modo algum no que escrevo. Neste
grupo incluo o magnífico triunvirato irlandês do século XX, Yeats,
Joyce e Beckett, por exemplo, ou um William Faulkner nos Estados Unidos,
um escritor que apanha magistralmente a corrente da vida, como o seu
Mississípi, lê-lo é deixar a vida correr como a consciência corre no
sentido do stream of consciousness de William James. Partimos
quase sempre dos anglo-saxónicos quando falamos de literatura
contemporânea, mas o que cresce nas suas margens é tanto ou mais
interessante. Jorge Luís Borges é um caso único nas letras de expressão
ibérica, tal como Fernando Pessoa, mas muitas vezes o que nos fascina
neles é justamente a proximidade com a cultura inglesa, e menos aquilo
que mais próximo está da nossa idiossincrasia, como o Pessoa do Livro do
Desassossego ou do filósofo António Mora. Autores coevos de língua
alemã, como Rolf-Dieter Brinkmann ,Heiner Müller ou Peter
Handke. Aliás desde Garrett que a nossa literatura se desenvolve em
diálogo, mais ou menos profícuo, com a literatura inglesa, pese embora a
influência francesa no século XIX. Hoje, talvez mais do que nunca, um
jovem escritor português aprende a escrever ficção à anglo-saxónica, mas
há um grande equívoco nesse mimetismo, porque as nossas tradições são
bastante diferentes, e é o único, o singular que devemos privilegiar.
Bernardim Ribeiro é a minha principal referência portuguesa. Recuso-me no entanto a ver em Menina e Moça um
significado oculto cabalístico ou pelo menos judaico. Mais uma vez
estou de acordo com a filósofa Dalila Pereira da Costa, este livro está
muito mais próximo de uma antiga religião portuguesa, uma religião sem
deus, mas que adorava as fontes, os bosques, ou certas árvores como o
freixo. Garrett e Fernando Pessoa, pela sua capacidade de diálogo com a
cultura europeia, mas sobretudo pela imensa liberdade conceptual e
estética com que criaram a sua obra são, junto com Bernardim, as minhas
principais referências portuguesas. Eles vivem no nosso
inconsciente, actuam no nosso imaginário são grandes actores do nosso
ser colectivo. Perdoem-me o anedótico, mas ainda há pouco o génio de
Garrett se vingou no Parlamento daquele ministro que lhe destruiu a
última casa onde viveu, forçando-o a um gesto completamente
despropositado. E o que faço com Camões? Admiro-o extremamente como
lírico e a sua epopeia é obra única nas letras universais. E Eça? Que
prazer é lê-lo, dos melhores da vida, mas são dois exemplos de autores
que admiro sem que me influenciem.Antero, Nobre, Cesário, Pessanha os
nossos fundadores da Modernidade, que viagens, meu deus.
Contemporâneamente sinto-me fascinado pela prosa violenta e radical de
um Rui Nunes, ou pela viagem pelos arcanos espirituais da cultura
europeia de uma Maria Gabriela Llansol, também eles são autores de
referência para mim, sem que me influenciem directamente no que escrevo.
A
luz no poetar dos nossos dias, é uma frase que me remete
inexoravelmente para Camilo Pessanha “...Eu vi a luz em um país
perdido”. O país perdido é o nosso Portugal, diria, possuído hoje por
todos os demónios da Modernidade, cantando-os sem reencontrar a raiz ancestral da nossa mátria. Encontramo-nos
(os poetas) num dilema, tal como Hölderlin no seu tempo: deveremos
olhar para trás, para uma mátria ideal, que ele buscou na cultura grega
clássica, ou tornarmo-nos tão irreconhecivelmente modernos que o melhor
que poderíamos fazer seria seguir o exemplo de Joseph Conrad e
começarmos a escrever em inglês? Será adaptável à nossa língua e cultura
a ideia pop do poema-objecto? Não creio que estejamos assim tão
“modernizados”, somos uma sociedade de serviços não uma sociedade
industrial, para o conseguirmos; por isso leio muita da nossa poesia
contemporânea como um imenso painel colectivo onde se manifestam
tendências mais do que propriamente individualidades. Julgo que Ruy Belo
apontou caminhos, mas Fernando Pessoa perdurará por muito tempo como o
arquétipo de toda a modernidade portuguesa. O surrealismo “ambientado”
de um António Maria Lisboa, de um António Gancho, ou singularmente
desambientado de Herberto Helder são filões da nossa tradição retórica
barroca, filões que poderão sempre renascer. E há a espiritualidade de
Pascoaes, pairante mas sem sucessores. Agostinho da Silva também apontou
caminhos, por sinal bem fecundos, mas a nossa mentalidade colectiva não
está preparada para receber a sua mensagem. Infelizmente os nossos
poetas não dialogam com os nossos filósofos, enquanto algumas das mais
brilhantes páginas de pensamento, impregnadas de literariedade, foram
escritas pelos nossos filósofos, como Leonardo Coimbra. Considero,
porém, que assim como Portugal, o nosso território, é um templo
universal para a ideia de Saudade, também o é para a Poesia, aqui com
maiúscula. Há mais poesia numa procissão religiosa de uma aldeia
portuguesa do que em qualquer discoteca citadina, igual a milhões de
discotecas em todo o mundo.
FMG-
Costuma dizer-se que depois de Sartre a pós modernidade colocou os
intelectuais numa posição descentrada. O que é ser intelectual hoje? Se o
intelectual nasceu com a Cidade, hoje, com a globalização terá virado
funcionário? O intelectual é um "escriba obscuro" como escreveu
Foucault?
JTM-Somos
mais de seis biliões de seres, em breve seremos dez. São números de uma
grandeza insuportável. Quantos milhões de “intelectuais” não haverá em
todo o mundo? A problemática da espécie constrange-nos a perspectivarmos
o homem segundo as leis da biologia evolutiva. Que sentido fazemos como
espécie? Um “intelectual” é um peixe que sabe mover-se nas águas da
cultura, sobrevive aí, como outros sabem sobreviver nas águas das
finanças, ou do desporto. A distinção entre o “intelectual” e as
“massas” tornou-se quase irrelevante, qualquer um é um “intelectual” no
seu ofício. Há cozinheiros profundamente intelectualizados. O impacto do
intelectual empenhado em causas políticas ou sociais, como Zola, quase
desapareceu, a democratização da nossa sociedade atribui um valor muito
relativo à tomada de posição dos intelectuais sobre as questões sociais.
Também parece estar encerrado o ciclo dos grandes romancistas
universais, embora a indústria cultural continue a manter vivo o mito.
Cada vez mais hoje e no futuro o intelectual será julgado pela sua
atenção ao microscópico, à vida em torno de si, e aí sim, ser-lhe-á
exigida coerência e verosimilhança. O autobiográfico, a história local, o
quotidiano da pequena comunidade, a “pequena história” são hoje valores
seguros para medir a universalidade de um autor. Porque paradoxalmente é
essa atenção ao indivíduo inserido no seu microcosmo que poderá captar a
empatia de leitores situados em lugares remotos do planeta.
Sem
me querer repetir, afirmo que o “intelectual” de hoje, identificado
como o indivíduo cosmopolita por definição, universalista na sua
racionalidade histórica, igual ou muito parecido com os “intelectuais”
dessa vaga imensa de desenraizados culturais que pululam no planeta, é
um “animal social” em vias de extinção. Foi tão intelectual um biólogo
como Stephen Jay Gould como é hoje um José Saramago com suas “velhas”
polémicas em torno do ateísmo. A causa dos direitos humanos continua a
ser transversal a qualquer programa político, mas ainda assistimos a
“intelectuais” incapazes de assumirem coerentemente esses valores, mais
de duzentos anos após a Revolução Francesa. Os “intelectuais” provindos
das Letras são hoje em muitos casos exemplos quase patológicos de como a
cegueira ideológica é ofuscante do verdadeiro espírito crítico,
condição sine qua non para se ser um “intelectual”. Encontramos
muitas vezes a verdadeira liberdade indagadora e questionadora junto de
cientistas, de artistas, ou mesmo junto de alguns teólogos mais do que
entre os intelectuais das Letras.
FMG-Quem escreve e relata mundos de imagens alguma vez deixa de ser escritor? Há uma Morte nos escritores?
JTM-O
escritor pode calar-se em vida, nunca mais escrever uma linha, como
Rimbaud, pode mudar de vida, nesse caso ele já foi um escritor; embora o
seu corpo continue vivo circula na sua psique uma outra visão do mundo e
do seu papel nele. Mas creio que o caso de Rimbaud não é muito comum.
Por norma um escritor cria uma segunda natureza em si, constrói
pacientemente uma identidade, não creio que aconteça algo de muito
diferente nas outras expressões artísticas. O que é singular no escritor
ou artista é o assumir desse grande risco, dessa aventura de fim
imprevisível que é o momento da decisão de se tornar um escritor. Na
maior parte das profissões as pessoas fazem escolhas com riscos
calculados e resultados previsíveis. Quem se atreve a ser poeta ou
escritor, se não tiver meios financeiros que sustentem a sua decisão,
está a correr um grande risco existencial. Por isso, à cautela, mas
também porque a crescente literacia da nossa sociedade o permite, o
poeta ou escritor opta primeiramente por uma profissão segura, muitas
vezes no ensino, e só depois, nos seus tempos livres, é que se dedica à
criação. Há um tipo social de escritor que infelizmente está a
desaparecer, o do escritor sem intervalos entre ser social e ser
literário, como o Luiz Pacheco, porque o preço a pagar é muito elevado, e
somos cada vez mais comodistas. Daí também a origem de uma sensação
muito frequente de “já visto”, de uniformidade, de até os criadores
literários serem dominados por uma espécie de pensamento único, em que a
vida não passa de um grande bocejo entre o momento em que nascemos e
aquele em que morremos. O escritor tem de viver muitas e diferenciadas
experiências, tem de sofrer verdadeiramente, como Cristo sofreu por amor
dos outros o escritor tem de sofrer por amor da arte. Mas tem a
liberdade de “morrer” para a literatura, e em muitos casos bem se pode
dizer que ainda bem que assim foi.
FMG-sua
poesia é classificável, ou classificar é limitar? Qual a sua obra mais
conseguida? Já se zangou por ter escrito alguma delas?
JTM-Um
livro é sempre inacabado, imperfeito como tudo o que é humano. A minha
poesia está quase toda inédita, publiquei apenas dois livros de poesia.
Obviamente a minha poesia é classificável, porque a função dos críticos e
dos historiadores é a de classificar, arrumar em classes, épocas,
tendências. Mas a auto-classificação é tarefa para mim quase impossível.
Não que eu não me compreenda, que não me lembre do contexto em que os
poemas surgiram, que não possa escrever a “história “ de um poema. Sofro
um pouco daquela ideia do “repentismo” do poema, da sua
irreversibilidade, do “momento iluminado”, tudo restos de uma concepção
do poeta enquanto oficiante de mistérios, embora me pareça ser esse um
mal menor, e como quanto ao resto gosto da conceptualização do livro,
como um arquitecto que faz a planta do seu edifício, enquanto um objecto
total, julgo-me um poeta “saudável” que aceita o desafio de criar um
poema como quem constrói uma casa para habitar, ou uma refeição para
degustar. O maior ou menor conseguimento de um poema, ou de um livro, é
uma experiência toda ela subjectiva para o autor que pode não coincidir
com a opinião dos estudiosos. Se eu disser que o longo poema Selenographia in Cynthia representa
um grau de conseguimento para mim muito elevado, estou apenas a falar
de um ponto de vista extremamente pessoal. Uma vez em Londres decidi
deitar fora tudo o que tinha escrito, ou transformar apenas alguns
textos. Mas fiz isso sem me zangar com ninguém nem comigo. Pareceu-me na
altura um acto muito lúcido. Outra vez entreguei a uma desconhecida um
maço com textos publicados e outros inéditos, nunca mais vi essa mulher.
Aí zanguei-me, não pelo que escrevi, mas porque nunca mais lerei
algumas coisas que me pareciam importantes. Ainda hoje não compreendo o
significado desse meu gesto. Mas por vezes escrevo coisas que vão
directas para o lixo, estão mal feitas, não têm saída, não consigo
dar-lhes qualquer volta.
FMG-Pode dizer-se que o escritor escreve sempre o mesmo livro e toda a obra é autobiográfica?
JTM-Pode
dizer-se com toda a verdade. O escritor transforma a sua vida em livro,
ora a vida é sempre a mesma até se extinguir, é sempre a mesma vida a
alimentar o mesmo livro que pode estar seccionado em vários, mas são um
único, como a vida do escritor é única. Repare em Cervantes, ou ainda
mais nitidamente em Joyce, desde Gente de Dublin podemos seguir uma clara linha que culmina em Ulisses. Os chamados Poemas da Loucura de Hölderlin, têm a mesma elevação que os seus Hinos. O Vita Nuova e A Divina Comédia de
Dante complementam-se, percebemos a mesma magnífica percepção humana do
que é o Belo e o Amor em ambos os livros. Os temas actuais de Saramago
já se prenunciavam nas suas crónicas antigas. Aliás, o nosso tempo
coloca uma exigência autobiográfica ao escritor, e algumas das
tendências mais fracturantes da actualidade relacionam-se com esse
autobiografismo e a sua insuportabilidade para muitos gostos formados
por modelos mais convencionais da arte narrativa. Em Portugal, devido à
existência histórica muito recente do “espaço público”, existe um pudor
exagerado e hipócrita em relação ao autobiográfico, isso tanto se
manifesta nos artistas como nos políticos e outras personalidades
públicas. Creio mesmo que uma das vias de “salvação” da literatura
consistirá no futuro no autobiografismo, porque o escritor será aquele
que seja capaz de colocar numa primeira pessoa, meio imaginada meio
real, uma experiência de vida autêntica, capacidade que por razões
óbvias de estranhamento e alienação individual está cada vez mais
distante da maior parte dos seus concidadãos.
FMG-
Pode dizer-se, parafraseando Heidegger, que na sua obra a poesia e a
metafísica são tão próximas como os cumes das montanhas distantes?
JTM-Alguém me disse uma vez que não gostava de ler a palavra “metafísica” nos meus poemas. O
sentido é que a metafísica já estava implícita, não era necessário
nomeá-la. Sou metafísico num sentido estritamente epicurista, que é
talvez o menos metafísico de todos os pensadores. Creio, é mesmo uma
questão de crença, que existe uma matéria subtil, uma matéria
desmaterializada, que os nossos sentidos e a nossa “formatação”
mundanizada só percepcionam por meio de um pensamento intuitivo, e
sobretudo constato que estamos apenas no início da descoberta das
potencialidades do nosso cérebro. Há processos de conhecimento, de
entendimento, existem correspondências com o universo em relação às
quais os nossos sentidos como os conhecemos, e as nossas diversas
“racionalidades” estão apenas no limiar do seu desenvolvimento. O homem
continua a ser o mesmo animal que sempre foi, a maior parte das nossas
acções são ditadas pelo “animal” em nós, e a morte do nosso corpo
continuará sempre a confirmar essa nossa animalidade. Nesse sentido a
cultura ocidental tem lavrado em grande erro ao pretender ignorar o
corpo e suas pulsões e necessidades. Quisemos angelizar o homem e
acabamos por nos converter em demónios, tudo em nome de ideias
antropológicas de propensão metafísica. Os orientais, com sua atenção ao
corpo, têm muito para nos ensinar, mas também os nossos místicos, como
Mestre Eckhart, porque partindo embora de um pressuposto metafísico, a
subsistência da alma, ensinam-nos que o corpo pode ser veículo de um
conhecimento transcendental e de uma percepção profunda e criadora do
nosso ser, outro conceito de natureza metafísica, mas que tem alimentado
toda uma “indústria” do pensamento. Parece-me que a seguir à morte de
deus de Nietzsche, só falta concretizarmos a morte do homem, o último
mito que nos impede de percebermos a realidade como um universo branco a
ser reescrito e reinventado.
Curiosamente
o Heidegger que conheço melhor, o dos seus últimos anos, parece-me
imbuído de uma circularidade oriental na exposição do seu pensamento.
Ele avança em espirais nas suas deduções, tendo simultaneamente presente
o ponto de partida e afastando-se dele cada vez mais, como na
antiquíssima concepção agrária do tempo que avança em espirais. Não é
por acaso que quando René Char o convida para orientar um curso de
filosofia livre na Provença com vista à formação de uma primeira geração
de franceses tradutores da sua obra ele ficasse conhecido nesse círculo
como o “taoista da Suábia”, por ele numa certa altura depois da guerra
ter começado a traduzir Lao-Tse. “O pensador diz o ser, o
poeta nomeia o sagrado”, afirma Heidegger, e é ainda como um nomeador do
que é sagrado para o homem, o que não se relaciona necessariamente com a
religião, que eu vejo o poeta nos tempos modernos.
FMG-O que anda a fazer e que projectos tem para o futuro imediato?
JTM-Continuo
a traduzir, colaboro em algumas publicações culturais, estou a criar um
jornal cultural online, e, obviamente, continuo a escrever literatura.
Dedico também algum tempo ao cultivo de uma horta biológica, e não
dispenso os meus passeios pela zona rural de Sintra e as saborosas
conversas com os residentes, principalmente os que aqui têm raízes
ancestrais. Estou mesmo a trabalhar num livro que é o resultado dessas
meditações em andamento.
FMG-O Jorge Telles Menezes foi director recente do Jornal de Sintra. Acha
que a imprensa regional tem futuro nesta época de jornais on-line?
JTM-Se
olharmos para a realidade sintrense existem muitos grupos sociais,
principalmente os idosos, que não têm acesso à internet, eles são
infoexcluídos. Por outro lado continuam a existir inúmeras situações
sociais em que as pessoas lêem um jornal ou uma revista, enquanto
esperam num consultório, ou nos transportes públicos. A imprensa
regional editada em papel continua a fazer todo o sentido, mas toda a
sua produção, distribuição e aceitação na comunidade deveria ser
repensada. A indústria tipográfica, por exemplo, terá de encontrar
materiais com reduzido impacto ambiental, a distribuição terá de ser
repensada, num concelho como Sintra as escolas deveriam obrigatoriamente
ter assinaturas dos jornais locais, assim como os museus e outros
espaços culturais, essa foi a via adoptada em França recentemente, assim
como oferecer assinaturas a estudantes locais, etc. Neste sector
sobreviverão os projectos que se afirmem amigos do ambiente, e que em
simultâneo saibam ir ao encontro dos leitores nas situações em que estes
têm disponibilidade para lerem um jornal regional. Por outro lado, os
jornais regionais têm de assumir causas, e deviam praticar ou favorecer o
jornalismo de investigação, apesar de este ser um terreno “minado”. Mas
só a independência partidária ou ideológica permitirão esse jornalismo
investigador e independente. Creio que esta seria mesmo uma condição
para a afirmação e expansão do jornalismo regional. Um
exemplo, ninguém quer investigar o que realmente se passou com a Santa
Casa da Misericórdia de Sintra nos últimos anos, propriedades vendidas, o
hospital da Vila fechado há anos depois de renovado, etc. Um jornalismo
de investigação local e independente há muito tempo que deveria ter
abordado essa questão.
FMG- A poesia pode salvar?
JTM-As
profecias religiosas, com influência até na filosofia política,
garantem-nos que sim, que um dia mortos e vivos dançaremos juntos num
paraíso terreal, que os nossos “pecados” nos serão perdoados e que
seremos bons, como fomos no paraíso perdido cantado por Milton. Vemo-nos
como banidos, proscritos do éden por um deus poderoso que talvez um dia
nos perdoe e deixe regressar a esse estado originário de pureza e
liberdade. O poeta, se for visto como um herdeiro dos oficiantes dos
mistérios, poderá ajudar os seus concidadãos a acederem a graus de
entendimento mais profundo da realidade da vida. Não seria propriamente
uma salvação no sentido finalista do termo, nem sequer ele se salvaria à
luz da lei mais certa que conhecemos que é a da nossa própria morte,
mas talvez o fosse se a morte reencontrasse para nós o antigo
significado de passagem para um estado mais subtil da matéria. Fiquei
profundamente chocado com a situação de uma moribunda num hospital
público. A família reunida em torno da cama tinha reacções diversas,
desde o choro sentido de alguns, até uma espécie de ajuste de contas em
que outros peroravam sobre dinheiros em dívida da infeliz mulher, que
perante a frieza do pessoal médico e a brutalidade materialista da
família, buscava em redor com o olhar uma espécie de confirmação de que
estava deixar um mundo supostamente humano. Encontrou o meu olhar, e foi
assim que se despediu da vida. Morrer assim, nessas usinas da morte
frias e assépticas tornou-se um complemento daquilo em que a vida se
tornou, um jogo materialista desprovido de sentido simbólico profundo e
vivo em que não só não pensamos o ser como também não nomeamos o
sagrado, parafraseando Heidegger.
FMG-Acha que há um panorama cultural sintrense ou há apenas epifenómenos de franja?
JTM-O
país já assimilou que a cultura é uma necessidade social e um bem que
fortalece a consciência dos indivíduos e os prepara para a luta pela
vida. Isso traduz-se obviamente nas políticas municipais, e os munícipes
de Sintra desfrutam hoje de uma oferta cultural mais rica do que aquilo
que existia há vinte anos, por exemplo. O município desenvolveu
infra-estruturas, apoia variadas iniciativas, mas ainda estamos muito
longe de termos conquistado o principal objectivo de qualquer política
cultural: a adesão e a formação dos públicos. Nas freguesias urbanas a
política cultural é quase inexistente, e é aí que a ausência de oferta
cultural cria tensões com efeitos muito dramáticos no quotidiano das
pessoas. Existem gravíssimos problemas de identidade em jovens
imigrantes de segunda geração que são despoletados em actos de violência
gratuita, até porque essa violência juvenil não nasce de situações de
miséria ou de pobreza. Lentamente, a Vila de Sintra tem-se vindo a
constituir como pólo atractivo para actividades culturais e não são
poucos os agentes culturais que vindos de fora se estabelecem no
concelho.Não será lisonjear, mas cumprir o dever de não faltar à
verdade, se salientar aqui o magnífico trabalho que a Alagamares tem
desenvolvido em prol das actividades culturais em Sintra. Esse trabalho
único realça a ainda generalizada falta de mobilização da nossa
sociedade civil para as questões culturais.
FMG-Jacinto
Prado Coelho dizia que ensinar a ler é facultar aos estudantes os
instrumentos mentais para a análise do texto literário. O que pensa que
procura o Leitor quando busca uma obra literária? Redenção, Contestação,
Cumplicidade, Conhecimento, ou simplesmente voyeurismo? O Leitor é
generoso ou é um ser distante e que tem de ser conquistado?
JTM-Como em quase todas as artes contemporâneas criou-se um fosso enorme entre a Literatura,
assim com maiúscula, e o leitor. Não tenhamos ilusões, a maior parte
das pessoas hoje em dia não lê Literatura, lê muitos Ersatz de
Literatura, romances cor-de-rosa, etc., mas se tiver de ler uma obra
literária não a entenderá. Nunca me esqueço na Faculdade de Letras da
dificuldade dos colegas em fazerem um exercício tão básico como a
sinalização de ironia numas páginas de Eça. Não conseguiam entender a
ironia de Eça, mais de cem anos depois! A mentalidade e os gostos dos
portugueses evoluíram muito pouco, tivemos o retrocesso da ditadura, mas
isso não explica tudo. Ainda hoje temos uma percentagem significativa
de analfabetos, nossos, a que se junta o analfabetismo de várias
comunidades migrantes. Tem sido feito um grande esforço pela sociedade
no seu conjunto, mas estamos ainda muito no começo da construção dos
pressupostos da Modernidade.
Mas
respondendo a outro nível da questão, julgo que o estatuto do leitor
deve ser revisitado criticamente. A escrita literária deveria despertar o
leitor para desenvolver em si num esforço criativo as suas próprias
capacidades expressivas. Ler para escrever, não uma ensaística de pendor
académico, mas o leitor deveria conseguir exprimir por escrito a
interacção que vivenciou com a fruição de um texto literário. Algo no
sentido da proclamação modernista de que a Literatura deve ser feita por
todos. O leitor de Literatura procura conhecimento, cumplicidade,
partilha, abertura de novos horizontes, sinapses insuspeitas, e cada vez
mais aprecia o trabalho feito sobre a linguagem pelo
autor, porque ele leitor já percebeu perfeitamente que a matéria-prima
da Literatura são as palavras, como um amador de arte se interessará
pelos pigmentos utilizados por um certo pintor.
Existem
alguns equívocos no nosso ensino que muito têm prejudicado a evolução
da nossa capacidade de expressão escrita e que atiram para o consumo da
literatura “leve” milhares de leitores. Um desses equívocos é que não se
assume que desde os primeiros anos de escola até aos bancos da
universidade andamos a pedir aos alunos que eles desenvolvam a sua
capacidade ensaística. Ninguém fala disso, quando muito um professor
fala em escrever uma redacção, mas não se chama ensaio ao que deveria
ser um. Ensinar a escrever um ensaio deveria ser um objectivo pedagógico
consensual, porque o pobre estudante nada mais fará em ciências humanas
se não escrever ensaios até ao fim da sua escolarização.Essa
consciencialização da arte ensaística é curial para a nossa evolução,
porque só depois é que o aprendiz de Letras poderá partir para uma
ensaística subjectiva, em que partilhará com outros leitores a fruição
estética da leitura de uma determinada obra literária. As grandes obras
literárias interpelam-nos como leitores, e nós deveríamos ser capazes de
exprimir os sentimentos e os pensamentos que elas em nós provocam. O
leitor só perderá a sua passividade quando se tornar ele próprio um
animal escrevente. O leitor é o ser mais generoso do mundo porque aceita
que um desconhecido entre na sua visão íntima das coisas e da vida,
permite que um escritor comece a fazer parte constitutiva da sua própria
mundividência.
NOTA BIOGRÁFICA
Poeta, tradutor, dramaturgo, cultor de spoken word.
Sintra estruturou a sua existência. O verdadeiro cosmopolita é o mais
puro defensor da tradição. Cresceu como ser humano quando traduziu
Martin Heidegger e William Faulkner. De poesia publicou os livros In einer Fremden Stadt e Selenographia in Cynthia. É contra a civilização do petróleo, só usa transportes públicos.
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