Quem passe por Sintra perto da Correnteza, por certo já se cruzou com uma senhora idosa que tricota uma indecifrável manta e, sempre no mesmo banco junto ao miradouro, fala, fala sempre, sozinha e sem que alguém a interpele, deserdada da vida, qual Penélope envelhecida esperando um improvável Ulisses que nunca virá, enquanto a manta parece não crescer, como se de noite fosse desfeita para logo de manhã recomeçar. Se as cidades têm os seus ícones, também muito têm hoje de mártires duma sociedade desumanizada que a todos confronta, e cuja resposta parece ser passar em silêncio, como se tais pessoas não existissem, ou estejam já adquiridos na paisagem, como os mendigos do Chiado a quem as senhoras caridosas a caminho da missa davam esmola num gesto de silenciosa e aliviada caridade. Quer as senhoras, quer os mendigos eram parte desse microcosmos, assim se (con)vivendo, cada um refugiado no seu estatuto e intangível destino social.
A velha da Correnteza encaixa neste figurino, qual personagem perdido de Dickens, e recorda-me um poema do século XIII de João Garcia de Guilhade:
Ai dona fea! Fostes-vos queixar
Porque vos nunca louv' en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!
Dona fea! Se Deus me pardon!
E pois avedes tan gran coraçon
Que vos eu loe, en esta razon,
Vos quero ja loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora ja un bon cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia.
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