A sala
estava profusamente engalanada, orgulho dos jardineiros que andaram preparando
o evento: a noite das Camélias. O visconde de Asseca, o Presidente da Câmara,
Joaquim Fontes, Medina Júnior, Rui Cunha, todos compareciam, com as esposas e
as filhas casadoiras. Em breve o visconde de Asseca receberia a princesa
Margarida, irmã da rainha de Inglaterra, e seria juiz da festa da Senhora do
Cabo em S. Miguel, pelo que teria um 1959 em cheio. Homem alto e altivo, fora
visita regular de D. Amélia em Versailles, durante o exílio, e sua ligação
privilegiada desde que a condessa de Seisal falecera de provecta idade.
Ao
microfone, Amadeu José de Freitas convidava os pares para os boleros e valsas,
temas de Frederico Valério e Tavares Belo, e a orquestra excedia-se, ritmada,
tocando congas, rumbas e músicas da moda. Os mais velhos falavam de política,
exaltando as obras do governo: o novo ringue do hóquei, o matadouro, o bairro
económico de Queluz, a bem da Nação, a política de fomento chegava a Sintra. Um
discurso aqui, uma inauguração ou lápide ali, o progresso chegava ao ritmo de
jantares e homenagens.
Olavo
Moreira, jovem licenciado em Direito, era o secretário do visconde, e naquela
noite estava particularmente atento a Lucrécia, uma corista do Maxime a quem convidara para o baile,
embora dela não conviesse aproximar-se, era perigoso. Lucrécia, de sorriso malicioso,
já lhe conhecia os hábitos, e sobretudo a carteira, e disfarçava trocas de
olhares junto ao bar, onde assistia acompanhada de Humberto Madeira, em breve
ambos entrariam na nova revista de Giuseppe Bastos. Humberto estava a par da
relação, e de soslaio ia piscando o olho.
A certa
altura, Olavo invocou um telefonema e saiu na direcção do Hotel Nunes. O
gerente era conhecido e cúmplice logo lhe deu a chave da suite rosa, uma
previdente nota de vinte compraria a discrição. Lucrécia chegou pouco depois.
Lançou-se nos braços de Olavo e, avidamente, beijou-o, e tirou-lhe o casaco,
enquanto lhe ia pintalgando o rosto de bâton, qual camélia ao seu dispor. Já
rebolavam na cama quando da porta veio um toque seco e cadenciado:
-Quem é? –rosnou Olavo, irritado, ordenando
silêncio a Lucrécia.
-É urgente, senhor doutor! Está um senhor lá em cima
para falar consigo! – respondeu o porteiro da noite.
-Comigo? Aqui? -compôs-se, num ápice, e subiu à
recepção. Era Arménio Raposo, agente da PIDE e visita assídua de Sintra, a quem
a escapadela do baile não passara despercebida. Em Lisboa seguira-o no Maxime, havia ordens de discrição, o
visconde era uma figura grada do regime e não se queriam escândalos.
-Sr. doutor…não queria incomodar,
mas….Sintra, sabe, é muito pequena. Ainda se fosse no Estoril…-insinuou o
agente, enfiado numa gabardina enxovalhada e com um borsalino preto. Olavo
ficou furibundo:
-Você, aqui? Como se atreve a incomodar-me? -reagiu
altivo e desafiador. Quer que o senhor
visconde telefone ao seu chefe e o mande para os Açores de guarda aos
cachalotes? -ameaçou.
-Eu se fosse a si não fazia isso, senhor doutor…-e puxando da
carteira, sacou de uma foto dele com Lucrécia no Maxime, uma garrafa de
champanhe francês ao lado…-O senhor
ministro podia ficar incomodado, e nós não queremos que se estrague uma
carreira promissora, pois não?..
A armadilha
estava montada. Despachado Arsénio com azedume, voltou ao quarto, meteu
Lucrécia num carro de praça para Lisboa, e voltou para o baile. Raposo
seguiu-o, e discretamente ficou pelo bar, pedindo um copo de vinho. Por essa
altura já o álcool reinava entre os convivas: o capitão Américo Santos repetindo-se,
contava histórias estafadas do seu regimento em Benguela, no bar, senhoras
balzaquianas e já rubras pediam capilés de groselha. O visconde, que trocava
impressões com amigos, estranhou a longa ausência de Olavo e procurou-o:
-Olavo, onde foi você numa noite destas? O Provedor da
Santa Casa quer falar comigo, mas gostava que você escutasse, tive de o
despachar…
-Desculpe, senhor visconde, mas tive de atender um
telefonema, era o engenheiro Pavão, por causa do apeadeiro da Portela, sabe,
empreiteiros, não sabem quando estão a ser inconvenientes…-inventada a
desculpa, pediu um gin e foi falar com o prof. Fontes, o presidente da câmara,
a quem elogiou o novo ringue no Parque da Liberdade. O baile continuou e uma
hora depois os viscondes voltavam a S. Sebastião, e Olavo à casa dos pais,
enriquecidos com o volfrâmio durante a guerra.
Uns dias
mais tarde, Raposo foi alvo de um processo disciplinar, dum cofre na PIDE
sumira o fundo de maneio, o Mesquita e o Roldão, agentes de 2ª classe, juravam
tê-lo visto a tirar o dinheiro e levá-lo numa mala. A foto sumira, entretanto,
sem que desse por nada, num aperto de convivas meio ébrios, um amigo de Olavo
furtara-lha na noite do baile. A carteira apareceu mais tarde, mas sem a foto.
Alvo dum processo inconclusivo, acabou em Elvas, a carimbar salvo-condutos.
No ano
seguinte, Olavo voltou à Noite das Camélias. Desta vez, Lucrécia não foi,
aguardaria numa vivenda na Rinchoa, um vinho e velas esperariam uma tardia
ceia, camélia mas suplente, no baile da vida. A foto do Maxime, ornamentava o psyché
junto à caixa das jóias que ele, agora administrador dum banco e em ascensão na
União Nacional, regularmente ia acrescentando com brincos de amor e anéis de
paixão...
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