sexta-feira, 21 de março de 2014

O Baile das Camélias

FERNANDO MORAIS GOMES

A sala estava profusamente engalanada, orgulho dos jardineiros que andaram preparando o evento: a noite das Camélias. O visconde de Asseca, o Presidente da Câmara, Joaquim Fontes, Medina Júnior, Rui Cunha, todos compareciam, com as esposas e as filhas casadoiras. Em breve o visconde de Asseca receberia a princesa Margarida, irmã da rainha de Inglaterra, e seria juiz da festa da Senhora do Cabo em S. Miguel, pelo que teria um 1959 em cheio. Homem alto e altivo, fora visita regular de D. Amélia em Versailles, durante o exílio, e sua ligação privilegiada desde que a condessa de Seisal falecera de provecta idade.


Ao microfone, Amadeu José de Freitas convidava os pares para os boleros e valsas, temas de Frederico Valério e Tavares Belo, e a orquestra excedia-se, ritmada, tocando congas, rumbas e músicas da moda. Os mais velhos falavam de política, exaltando as obras do governo: o novo ringue do hóquei, o matadouro, o bairro económico de Queluz, a bem da Nação, a política de fomento chegava a Sintra. Um discurso aqui, uma inauguração ou lápide ali, o progresso chegava ao ritmo de jantares e homenagens.


Olavo Moreira, jovem licenciado em Direito, era o secretário do visconde, e naquela noite estava particularmente atento a Lucrécia, uma corista do Maxime a quem convidara para o baile, embora dela não conviesse aproximar-se, era perigoso. Lucrécia, de sorriso malicioso, já lhe conhecia os hábitos, e sobretudo a carteira, e disfarçava trocas de olhares junto ao bar, onde assistia acompanhada de Humberto Madeira, em breve ambos entrariam na nova revista de Giuseppe Bastos. Humberto estava a par da relação, e de soslaio ia piscando o olho.

A certa altura, Olavo invocou um telefonema e saiu na direcção do Hotel Nunes. O gerente era conhecido e cúmplice logo lhe deu a chave da suite rosa, uma previdente nota de vinte compraria a discrição. Lucrécia chegou pouco depois. Lançou-se nos braços de Olavo e, avidamente, beijou-o, e tirou-lhe o casaco, enquanto lhe ia pintalgando o rosto de bâton, qual camélia ao seu dispor. Já rebolavam na cama quando da porta veio um toque seco e cadenciado:

-Quem é? –rosnou Olavo, irritado, ordenando silêncio a Lucrécia.

-É urgente, senhor doutor! Está um senhor lá em cima para falar consigo! – respondeu o porteiro da noite.

-Comigo? Aqui? -compôs-se, num ápice, e subiu à recepção. Era Arménio Raposo, agente da PIDE e visita assídua de Sintra, a quem a escapadela do baile não passara despercebida. Em Lisboa seguira-o no Maxime, havia ordens de discrição, o visconde era uma figura grada do regime e não se queriam escândalos.

-Sr. doutor…não queria incomodar, mas….Sintra, sabe, é muito pequena. Ainda se fosse no Estoril…-insinuou o agente, enfiado numa gabardina enxovalhada e com um borsalino preto. Olavo ficou furibundo:

-Você, aqui? Como se atreve a incomodar-me? -reagiu altivo e desafiador. Quer que o senhor visconde telefone ao seu chefe e o mande para os Açores de guarda aos cachalotes? -ameaçou.

-Eu se fosse a si não fazia isso, senhor doutor…-e puxando da carteira, sacou de uma foto dele com Lucrécia no Maxime, uma garrafa de champanhe francês ao lado…-O senhor ministro podia ficar incomodado, e nós não queremos que se estrague uma carreira promissora, pois não?..

A armadilha estava montada. Despachado Arsénio com azedume, voltou ao quarto, meteu Lucrécia num carro de praça para Lisboa, e voltou para o baile. Raposo seguiu-o, e discretamente ficou pelo bar, pedindo um copo de vinho. Por essa altura já o álcool reinava entre os convivas: o capitão Américo Santos repetindo-se, contava histórias estafadas do seu regimento em Benguela, no bar, senhoras balzaquianas e já rubras pediam capilés de groselha. O visconde, que trocava impressões com amigos, estranhou a longa ausência de Olavo e procurou-o:

-Olavo, onde foi você numa noite destas? O Provedor da Santa Casa quer falar comigo, mas gostava que você escutasse, tive de o despachar…

-Desculpe, senhor visconde, mas tive de atender um telefonema, era o engenheiro Pavão, por causa do apeadeiro da Portela, sabe, empreiteiros, não sabem quando estão a ser inconvenientes…-inventada a desculpa, pediu um gin e foi falar com o prof. Fontes, o presidente da câmara, a quem elogiou o novo ringue no Parque da Liberdade. O baile continuou e uma hora depois os viscondes voltavam a S. Sebastião, e Olavo à casa dos pais, enriquecidos com o volfrâmio durante a guerra.

Uns dias mais tarde, Raposo foi alvo de um processo disciplinar, dum cofre na PIDE sumira o fundo de maneio, o Mesquita e o Roldão, agentes de 2ª classe, juravam tê-lo visto a tirar o dinheiro e levá-lo numa mala. A foto sumira, entretanto, sem que desse por nada, num aperto de convivas meio ébrios, um amigo de Olavo furtara-lha na noite do baile. A carteira apareceu mais tarde, mas sem a foto. Alvo dum processo inconclusivo, acabou em Elvas, a carimbar salvo-condutos.

No ano seguinte, Olavo voltou à Noite das Camélias. Desta vez, Lucrécia não foi, aguardaria numa vivenda na Rinchoa, um vinho e velas esperariam uma tardia ceia, camélia mas suplente, no baile da vida. A foto do Maxime, ornamentava o psyché junto à caixa das jóias que ele, agora administrador dum banco e em ascensão na União Nacional, regularmente ia acrescentando com brincos de amor e anéis de paixão...


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