FERNANDO MORAIS GOMES
Arnaldo raramente ia à praia, vivia enfiado naquele sótão da casa na Rinchoa onde escrevia poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Naquele dia, depois da consulta no hospital e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. Aterrara naquela esplanada da Praia Grande num turbilhão de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, mas a verdade é que todos os dias da vida são intervalos que a morte nos concede.
Arnaldo raramente ia à praia, vivia enfiado naquele sótão da casa na Rinchoa onde escrevia poemas que ninguém lia, tesouro da sua gaveta, confessionário dum ser torpedeado de inseguranças e fantasmas. Existia sem viver. Naquele dia, depois da consulta no hospital e a notícia de um fim próximo, tabaco fazendo das suas, sentiu a necessidade de estar perto da água salgada, sentir o cheiro límpido do iodo. Aterrara naquela esplanada da Praia Grande num turbilhão de whiskies duplos. Ninguém nos ensina a morrer, mas a verdade é que todos os dias da vida são intervalos que a morte nos concede.
Um
cancro no pulmão intrometia-se, convidado indesejável. No início a
surpresa, a hipótese do engano, a segunda opinião. Depois o desespero,
presença insuportável, lágrimas, mágoa, as dores como companheiras mais
chegadas. Estava só, naquela morte de viver, os livros que nunca
editara, tudo comprometido por um corpo frágil e tangível,
qual anjo caído, pecador, mergulhado em culpas secretas a quem iam
faltando asas para voar. Exaurido do mundo, exaurido de si, talvez
finalmente descansasse.
Antevia
já a campa inerte onde poucas flores lhe iriam levar, uma lápide
burocrática e igual a todas as outras, ninguém para lembrar a obra
desconhecida por editar, só aquele solitário funcionário do registo
civil a escrevinhar em guardanapos de papel na mesa do canto da leitaria
do bairro as obras- primas da sua gaveta secreta,fumando os religiosos
três maços de cigarros diários. Agora acendia mentalmente o cigarro e
fumava com a imaginação, comprara um isqueiro de plástico. A
quimioterapia fazia das suas, os cabelos cada vez mais agarrados ao
pente, tosse purulenta, olhos inchados.
Uma vez mais pegava na caneta e no guardanapo de papel e ensaiava um testamento, requiem
dos bens que não tinha para uma família que não existia. Quando tudo
acaba não sabemos ao certo o que devemos pensar, há a tentação de
escrever para imortalidade. Redigiu umas linhas, levantou-se, passeando
no areal, um trilho de pegadas na areia molhada.Ignorou o médico, e
fumou um dos cigarros assassinos, o mal estava feito.
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