JOÃO CACHADO
De
acordo com o anunciado na semana passada, hoje, referência à Temporada de
Música 2014 Tempestade e Galanterie, que já arrancou no passado dia 8, no
Palácio de Queluz, iniciativa da Parques de Sintra Monte da Lua em articulação
com o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal.
Poucas
horas antes do recital, em troca de mensagens com o Maestro Massimo Mazzeo,
alma mater e Director Artístico desta iniciativa, escrevia ele que o pianista “(…)
Ronald [Brautigam], passou a manhã no Clementi e ficou simplesmente deslumbrado
com a qualidade da manutenção feita no instrumento, assim como pela
magnificência do Palácio. Tenham a vossa alma desperta para o grande prazer que
o recital de hoje à noite poderá dar. (…)”
Clementi, grande vedeta
Pois,
meus caros leitores, de facto, bem podia o Ronald estar perfeitamente
deslumbrado… Este Clementi é do melhor que tenho ouvido, permitindo todas os
matizes de abordagem. Está em condições óptimas, após a intervenção de
conservação e restauro de que foi alvo. Trata-se de um instrumento com uma
estrutura em madeiras de mogno, pau-santo e casquinha, construído em
Inglaterra, no ano de 1810, por Muzio Clementi (1752 – 1832), fazendo parte do
acervo do Palácio de Queluz por doação de Guilherme Possolo. Vale a pena citar
Massimo Mazzeo, alma mater deste Festival:
“(…)
Foi alvo de um “processo de recuperação e reconstituição de todas as partes
físicas e mecânicas, do qual foi feito um relatório, o que aliás, não existia
relativamente ao anterior restauro, feito há 15 anos”, contou. O pianoforte,
relativamente ao de hoje, que é uma máquina praticamente perfeita, tem um
teclado de cinco oitavas e meia - enquanto que os actuais chegam às sete e oito
oitavas – portanto, de dimensões mais reduzidas, com teclas menores, totalmente
concebido em madeira, ao passo que, nos nossos dias, já se usam ligas
especiais” (…).
O
plano de recuperação do pianoforte, cuja diferença para os pianos atuais das
salas concerto (…) é como entre um Ferrari e um carro de época”, inclui uma
monitorização semanal, com medições de humidade e temperatura e é regularmente
tocado, mesmo que não em concerto, cabendo ao cravista e pianista José Carlos
Araújo, semanalmente, tocar o Clementi", explicou, de modo a garantir a
sua manutenção. (…)”
Recital do dia 8 de
Março
Palácio
de Queluz, Sala da Música a abarrotar, público muito interessado e,
evidentemente, com a satisfação no gesto, no rosto, nos comentários durante o
intervalo e no final do recital. Noite grande, da grande música dos tempos do
classicismo da Primeira Escola de Viena, um evento em que melómanos atentos
ganharam mais umas pedras para o edifício pessoal do seu património monumental.
Naturalmente,
Ronald Bautingam que, graças a Deus, já tenho ouvido noutros auditórios,
evidenciou o privilégio de o ouvirmos através desta máquina fabulosa, tão bem
recuperada, tratada e mantida, que, após os seus mais de duzentos anos de vida,
poderá continuar a encantar as audiências como a deste memorável serão.
Não
se esqueçam que era do pianoforte, e não dos posteriores Bechstein, Bösendorf,
Steinweg, Steinway ou Yamaha, o som que os compositores de setecentos tinham na
cabeça quando compunham, este o som que se ouvia nas salas. E, de modo algum,
se pode dizer que o piano actual é «melhor» do que um pianoforte, original do
século dezoito ou réplica dos nossos dias. São máquinas diferentes, ambas
fascinantes.
Quem
«disto» muito sabe, muito mais do que eu e do que qualquer simples e
interessado melómano, é Paulo Pimentel. Lá esteve no recital do dia 8, para
que, durante o intervalo, atento e competentíssimo, procedesse a uma
circunstancial, necessária e sumária afinação. Andei pelo estrado, sem
perturbar, aproveitando para acompanhar aquela sua atitude de carinho sobre a
peça, «pedindo-lhe» continuasse a maravilhar-nos, sempre nas melhores
condições.
Permitam
que, neste momento, coloque um detalhe mais pessoal neste relato. É que conheço
Paulo Pimentel – bisneto do Arq. Raúl Lino, neto de D. Maria Cristina Lino
Pimentel e sobrinho-neto D. Isolda Lino Norton de Matos, que, ainda nos anos
oitenta, com o meu pai e comigo, faziam parte de um grupo que se deslocava, por
exemplo, ao Festival de Música de Lucerna. Que saudades, meu Deus!. Ainda sobre
o estrado, já depois de afinar o Clementi, lembrava ele as «conversas musicais»,
histórias da música e de instrumentos musicais, no escritório do meu pai, na
Rua Passos Manuel, quando o Paulo era mesmo muito jovem.
Quanto
ao programa do serão, a primeira peça que escutámos foi a Sonata em Si bemol
Maior, Op. 24 No. 2, precisamente, de de Muzio Clementi, obra através da qual
ele próprio e Mozart se «bateram em duelo musical», no dia 24 de Dezembro de
1781, suscitado pelo Imperador José II. Foi na sequência deste episódio que, na
célebre carta de 16 de Janeiro de 1782, destinada ao pai Leopold Mozart, o
compositor considerou Clementi um simples Mechanicus.*
A
quem ainda não o conhecia ao vivo, logo Brautingam deu a entender como estava
em presença de um excepcional artista, que, neste reportório, é dos mais
saudados a nível mundial. Seguidamente, de Haydn, aquela que, em 1780, ele
próprio considerou a maior e mais difícil Sonata que havia escrito para
instrumento de tecla até à altura, a Sonata No. 33 em Dó menor, Hob. XVI/20
(1771); de Mozart, as Sonatas No. 17 em Si bemol maior, KV 570 (1789), uma das
mais simples, e No. 14 em Dó menor, KV 457 (1784), cuja tonalidade indicia a
pertença ao grupo das obras menos tranquilas e angustiadas do compositor –
ainda que, neste capítulo, as peças em Sol menor sejam as mais perturbantes – e, finalmente, de
Beethoven, a Sonata No. 4 em Mi bemol Maior, Op. 7 (1796/7), longa, compósita,
belíssima, virtuosística, um absoluto monumento da forma sonata, com um Rondo
final que é um verdadeiro testamento escrito, precisamente a meio da vida
(1770-1827) do compositor.
A
Temporada de Música Tempestade e Galanterie continua já no dia 12 de Março
[data em que escrevo este texto], contando com um recital de Kristian
Bezuidenhout – estupendo pianista que tive o gosto de ouvir e ver, também em
pianoforte, num recital durante a recente Mozartwoche em Salzburg –
interpretando em Queluz, além de peças de Johann Sebastian Bach e de Wolfgang
Amadeus Mozart, também de Carl Philipp Emanuel Bach, assinalando os 300 anos do
seu nascimento.
Posteriormente,
seguir-se-ão concertos e recitais, no dia 16, com a Orquestra Divino Sospiro,
Catarina Costa e Alexandra Campos; a 22, com Alexandre Lonquich (pianoforte) e
Christophe Coin (violoncelo); a 28, com o Thalia Ensemble e, finalmente, a 29,
Divino Sospiro e Pedro Burmester, sob a direcção do Maestro Massimo Mazzeo.
Todo o programa é verdadeiramente imperdível.**
Claro
que está de parabéns a Parques de Sintra Monte da Lua. Na realidade, de modo
tão patente, continua a demonstrar que, seja qual for a área cultural em que se
envolva – como esta, de promoção de eventos no domínio da tão sofisticada e
específica música do período setecentista – sempre demonstra a alta qualidade
do seu empenho.
_________________________
*Não
há qualquer testemunho escrito acerca de quem terá ganho a competição mas, isso
sim, o rumor segundo o qual o Imperador teria feito uma aposta com a Grã
Duquesa da Rússia, Maria Feodorovna, em como Mozart venceria… A verdade é que,
na ocasião, José II ofereceu a Mozart um presente de 50 Ducados. Para terem uma
ideia do valor actualizado, segundo recente investigação: - 1 ducado continha 4
½ Gulden. No tempo de Mozart, 20 Gulden equivaleriam a um poder de compra
actual de cerca de £350. Tal significa que o presente do imperador rondaria
cerca de 3800 libras actuais. De facto, um presente imperial…
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