quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A tarte de cereja



EURICO LEOTE
Pé ante pé, umas vezes saltitando e outras tropeçando, caminhei devagar, rumo ao objectivo previamente alinhado e traçado. Enquanto caminhava ocorriam-me à imaginação vários pensamentos. E se num repente alguém entrasse e decidisse acender a luz? Que susto não apanharia ao ver-me ali àquela hora, descalço, semi-nu e de cabelos desgrenhados, caminhando aos tropeções, qual sonâmbulo mecânico, receoso porque cauteloso, procurando desviar-me dos móveis vários que habitavam na casa. De tantos cuidados colocados na deslocação rumo ao meu objectivo, acabei inevitavelmente por bater com o meu dedo mindinho, mesmo o mais pequenino, precisamente na perna de uma cadeira, acidentalmente depositada fora do seu lugar habitual. Vociferei. Tapei a boca e gritei para dentro. Devo ter assumido todas as cores do arco do íris. Fiz caretas medonhas que deviam assustar seguramente o Adamastor. Dobrei-me e acariciei o dedo magoado. Esfreguei-o e apertei no sentido de tentar acalmar a dor crescente. Suspirei. Contive-me a muito esforço poupando algumas imprecauções prontas a serem vomitadas da boca para fora. Senti-me banhado por suores frios. Respirei fundo absorvendo a maior quantidade de ar possível. Forcei-o a sair lentamente, perdendo gradualmente pressão e esvaziando por completo os pulmões. Sentei-me momentaneamente no chão. Cerrei os olhos com força. Curvei o tronco numa postura de prostração. Fi-lo subir lentamente puxando as costas para trás. Inspirei e expirei rápido. Senti-me mais calmo e aliviado da dor que aos poucos se desvanecia e afastava. Soergui-me devagar tendo o cuidado de rolar lateralmente, não fosse ser apanhado por alguma tontura momentânea, que me conduzisse ao desequilíbrio e atirasse de novo ao chão, e aí tudo poderia complicar-se e piar de outra maneira. Já refeito e mantendo-se o total silêncio, concluí que ninguém dera por nada e que tudo se mantinha normal e tranquilo.

Acerquei-me da janela e entreabri os fortes cortinados para espreitar para o exterior. A lua estava baça, difusa e desfocada. Sinal de chuva, costumam dizer os mais velhos servindo-se da sua sabedoria de observação, quando a lua se apresenta com um halo em seu redor. Uma ligeira brisa própria da hora matutina soprava visível nas ramadas altas das árvores, as quais compunham a alameda da rua fronteira à casa.

Os incidentes anteriores e a contemplação da rua com os candeeiros alinhados, cuja luz se perdia no fio contínuo e convergente da faixa de rodagem, levaram-me a alterar e a suspender os propósitos e desígnios programados inicialmente.

Decidi regressar ao ponto de partida, e iniciei o caminho de retorno, com atenções e cautelas redobradas. Havia que evitar repetir o incidente e a dor sofrida.

Consegui regressar ao meu destino. Entrei no quarto. Calma e placidamente deitei-me sobre a cama. Cobri-me com o cobertor e rapidamente adormeci.

Fui despertado pelo barulho do estore da janela do meu quarto a ser puxada e levantada. A claridade irrompeu e a luz revelou todo o meu quarto. Minha mãe em pé, olhava para fora observando o movimento da rua. Aguardava que aos poucos fosse despertando e acordando. O sol havia penetrado no quarto. Voltou-se sorridente e perguntou-me se por acaso e acidentalmente durante a noite, eu não teria dado uma escapadinha até à cozinha, afim de comer uma saborosa fatia de tarte de cereja, pois pela manhã encontrara migalhas por toda a parte da casa. Fiz cara de estranho, neguei veementemente e desculpei-me. Concluí que o meu irmão mais novo concretizara o que eu não fora capaz de levar por diante. Contudo, sentia-me igualmente culpado, pois todo o meu ser e pensamento comungou da mesma ideia, apenas não realizada face ao incidente do qual fora protagonista.

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