domingo, 19 de outubro de 2014

Um beberrão de má-fé



CARLOS CAMACHO
Sempre existiram bailaricos na aldeia de Fontanelas. Presenciei uma fase de transição entre os bailes de dançar “a dois” e os de dançar “sozinho”. O “rock” e os “Slows” deram cabo dos bailes com música a metro. Lembro-me, particularmente, da década de 70 e dos grandes bailes abrilhantados por conjuntos muito conceituados que reproduziam músicas dos Rolling Stones, Beatles ou Led Zeppelin. Eram os Orpor, Intento, Black Stars, etc, etc. Toda uma geração mais velha do que eu apanhou em pleno essa época, recheada de contestação ao Status Quo vigente e às músicas da Eugénia Lima ou do Jazz Flôr da Aldeia. Deixou de se dançar a dois, excepto nos “slows”. Muita coisa mudou nos anos 70, em Fontanelas e no mundo.

Existiam denominadores comuns a todos os bailes. Contestação à música alta, mães vigilantes, filhas a tentarem contornar a vigilância, bifana 5 paus e sandes de molho 10 tostões, pais a beber copos no bufete e a velha tradição da bofetada no final do baile, por esta ordem e aumentando de intensidade com o avançar da noite.

Quanto à música alta muito se ralhava mas pouco se fazia. Era moda e a vantagem era dos órgãos “Farfisa”, das baterias “Yamaha” e das guitarras “Fender”.

No que toca a vigilância das mães, esta assumia contornos ridículos, que ia desde a ocupação ininterrupta da primeira fila do camarote, estrategicamente sobranceiro à sala, proporcionando um posto de observação privilegiado, à permanência em pé na sala ou até, por mais do que uma vez, à permanência em pé nas cadeiras de madeira gingonas que bordejavam o salão da Sociedade em dupla fila. Havia de tudo. Esta vigilância assumia especial cuidado quando tocavam aquelas músicas mais calmas, os “slows”. Aí sim, o radar era accionado a 500% e a vigilância feita à lupa. Não há registo de que alguma mãe alguma vez tenha conseguido conter as hormonas malucas das filhas que teimavam em pular que nem doidas.

As filhas fugiam como podiam. Davam um pulo à casa de banho com passagem pela rua. Combinavam encontros, dançavam mais apertadas ou, simplesmente, saltavam a janela do quarto depois do baile.

Bifana 5 paus, sandes de molho 10 tostões.

Minis, médias, copos de tinto e branco, cheio ou meio, interessava era molhar o bico. Aquela música maluca baralhava a cabeça e fazia sede.

 Normalmente antes do baile acabar havia sempre bofetada. Era o sal e a pimenta da coisa. Tinha sempre que haver zaragata, normalmente provocada por um copito a mais, uma raiva antiga ou uma disputa de saias.

Quando o motivo eram saias, a coisa resolvia-se à bulha na rua com intervenção feminina ou ficava prometida nova investida na próxima vez. Raivas antigas era só letra. Não passava de trinta e um de boca, ameaças e “segurem-me senão eu mato-o”.

Copitos, dependia da rezinguisse dos intervenientes. Quando estavam os dois “carregados”, a coisa prolongava-se. Quando só um estava “tocado”, daqueles que qualquer copito fazia despoletar o azedume da vida e vir ao de cima o amargoso fel que lhes temperava a alma, era mais ou menos simples. Era a história do beberrão de má fé, do Bocage:



Um beberrão de má-fé,

numa tasca amotinando,

dá tamanho pontapé

Num sábio que ia passando

que dá com ele no chão.

Esperava-se função.

Mas este levantou-se,

dizendo para a taberna:

Por uma besta dar um Couce

Há-de se lhe arrancar uma perna?



E acabava a zaragata e o baile. Boa noite.

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