Num texto
publicado a propósito do centenário do nascimento de Francisco Costa
(1900-1987), muito justamente celebrado no ano de 2000, analisei alguns aspetos
associados à casa onde o citado
escritor viveu cerca de sessenta anos (situada em Sintra, na rua Sacadura
Cabral). Procurei, no momento, valorizar a cumplicidade existente entre o autor
do projeto de arquitetura, Raul Lino, e os desígnios do futuro utilizador. Com
efeito, a obra literária do escritor sintrense deixa transparecer quão
significativa foi a casa que habitou – entendamo-la enquanto espaço de vivência
cultural e familiar – para o seu labor criativo. E não é apenas pelo facto de
em alguns romances de Francisco Costa serem descritas paisagens observadas do
alpendre de sua casa (cf., por exemplo, A
Graça e a Serpente, edição de 1969, p. 229) – do qual se tem, aliás, ampla
e privilegiada vista para os vetustos castelo mourisco e paço real –, do mesmo
modo, trechos do interior da habitação, mas sobretudo pelo lar surgir como um espaço de contrastes, se quisermos, de
dicotomias: luz/sombra; alegria/tristeza…
Em boa
medida, esse pensamento encontra-se plasmado num soneto digno de referência, na
sua derradeira versão (já que resultou de um processo de reescrita ao longo da
vida) intitulado “A Casa” e publicado em Última
Colheita (1987). Note-se que a ideia do soneto remonta ao período de
construção da casa do poeta (1926 a 1929). De resto, a primeira versão
conhecida, intitulada “Domus mea”, data de maio de 1930. Também desse ano (tudo
leva a crer) existe uma outra versão, sem título, muito similar (exceção feita
à segunda quadra) e escrita numa folha avulsa. Tratar-se-á do primeiro esboço?
O dito
soneto só viu a luz do dia em 1938, nas páginas do Jornal de Sintra e sob o título “Domus nostra”. Verificam-se,
aliás, algumas alterações relativamente à versão escrita em 1930, sendo
interessante a própria mudança de “mea” para “nostra”; traduz, na minha
perspetiva, maior espírito de comunhão entre a família que então crescia, se
enraizava e partilhava o espaço do lar.
Passaria
quase meio século até que o poeta voltasse a deter-se no soneto, ou seja, já na
fase final da sua vida. E é na última versão, passados então muitos e férteis
momentos de alegria, mas também de agrura e tristeza (como foram os dos
falecimentos da filha mais velha e da esposa), que a escrita explora com mais
fluidez e sentimento a dor física dos obreiros (metamorfoseada na dor de quem é
acolhido pelas paredes da casa). O próprio nome com que Francisco Costa rebatizou
o soneto, prescindindo de um pronome possessivo, deixa antever alguém que se
encontrava “maduro para a eternidade […] para repousar sem mais turbações de
existência”, fazendo minha a feliz expressão de Pinharanda Gomes.
Procuremos,
então, fruir as três versões do soneto…
Domus mea
Quando esta
casa, que hoje abriga a gente
das chuvas e
dos ventos, mal se via
emergir dos
caboucos, dia a dia,
pedra a
pedra, penosa e lentamente;
em certo dia
abafadiço, ardente,
o suor dos
obreiros escorria
juntando-se
à argamassa inerte e fria
numa pasta
de dor, salgada e quente.
Se, pois,
ante os espinhos e os escolhos
da vida, nos
vier o pranto aos olhos,
não ergamos
queixumes para Deus.
Nossas
lágrimas são a indigna paga
do suor que
outros deram, baga a baga,
para que
estes muros fossem teus e meus.
(Maio de
1930; espólio Francisco Costa)
Domus nostra
Quando esta
casa, que hoje abriga a gente
das chuvas e
dos ventos, mal se erguia
acima do
cabouco, e a trave esguia
viçava ainda
no pinhal ridente,
ah! quantas
vezes, sob o sol candente,
o suor, que
em fartas gotas escorria
da fronte
dos obreiros, convertia
a argamassa
banal num fluido ardente.
Hoje, ao
abrigo enfim dos temporais,
íntimos
ventos nos povoam de ais,
molham-se os
meus, choram teus olhos puros.
e o nosso
pranto, lentamente, apaga
a dor que
outros suaram, baga a baga,
e que arde
incorporada nestes muros.
A Casa
da serra
verde, ainda mal se erguia,
e as traves
da futura moradia
eram belos
pinheiros, simplesmente,
houve uma
tarde, sob um sol ardente,
em que o
suor em bagas escorria
da testa dos
pedreiros e fazia
da cal e
areia uma argamassa quente.
Hoje, há
paredes contra os vendavais,
mas é cá
dentro que soltamos ais
nos dias
mais aflitos ou mais duros.
Enquanto
gemem temporais lá fora,
pagamos nós
em lágrimas, agora,
a dor
incorporada nestes muros.
(Última Colheita, 1987, p. 13)
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