Com força literária inusitada, publicado em 2013, O Chalet das Cotovias, de Carlos Ademar,
antigo inspector da Polícia Judiciária e professor na Escola Superior de
Polícia, resgata para a literatura portuguesa o romance policial clássico
segundo o tradicional modelo de Georges Simenon e Agatha Christie (o policial
como espelho das taras sociais e psicológicas da comunidade) e dos seus famosos
inspectores da polícia Maigret e Poirot.
Trata-se de uma narrativa de intriga e mistério, de pendor
realista que, extrapolando a ocorrência policial específica, intenta
constituir-se como espelho histórico da sociedade, afirmando a fidelidade ao
real e a veracidade escrupulosa da História, determinada a partir do ponto de
vista dos documentos objectivos. No caso de O
Chalet das Cotovias, aborda uma história real a partir de fontes reais,
envolvendo-as numa trama narrativa exigente.
Em O Chalet das
Cotovias, trata-se de retratar os grupos sociais emergentes do Estado Novo
ao longo das décadas de 1930 e 40, bem como a especial comunidade de habitantes
femininos do Chalet das Cotovias em Sintra. Perfazendo as vezes de Maigret,
desponta o chefe de polícia Manuel do Rosário, tão heterodoxo nas investigações
quanto o seu homólogo francês.
Assim, por via das investigações em torno do desaparecimento
do advogado Luís Lencastre e do aparecimento do seu corpo num descampado em
Sintra, o autor, vocacionado por ofício e mestria para a escrita do romance
policial, como a sua obra romanesca o prova e este romance o manifesta de um
modo absoluto, explora tanto o universo de possibilidades de resolução do
mistério policial, segundo metodologias de investigação próprias do período em
questão, quanto a descrição de costumes sociais e de mentalidade psicológica do
momento histórico, tendo em conta, sobretudo, a aversão moral na época ao
lesbicismo, uma época puritana, fundada numa ética rural e católica fundamentalista,
que intenta morigerar o liberalismo e o positivismo morais da I República.
No caso da investigação policial, o romance explora todas as
possibilidades urdidas pela caracterização das personagens e pelo
desenvolvimentos dos factos, desde a possibilidade de vingança política e de
ciúme (Arnaldo Veiga, cuja mulher, Margarida, se tornara amante de Luís
Lencastre, e os seus dois serventuários,
descritos como autênticos “cães-polícia”) até à de ajuste de contas financeiro
(o advogado Costa Valente), passando pela hipótese de roubo e assassinato (os
mendigos “Matagatos” e “Zarolho”).
A solução, só atingida no final do romance, constitui um
verdadeiro achado e corre o risco (justo e legítimo) de ficar na história do
policial português devido ao seu carácter insólito, ainda que perfeitamente
lógico.
No caso da segunda vertente, o de se constituir como retrato
da sociedade, João Céu e Silva escreveu no “QI” do “Diário de Notícias” de 3 de
Agosto de 2013, que O Chalet das Cotovias
opera a “perfeita reconstituição histórica de uma época fundacional do país que
sobrevive até hoje”, isto é, evidencia com rigor a formação da polícia política
(a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) e a criação da Legião Militar,
mostrando que o modo como ambas as instituições arregimentam os seus servidores
tem mais a ver com interesses pessoais do que com a defesa de propósitos
ideológicos.
No Chalet das Cotovias, em Sintra, sucedem-se reuniões de
senhoras que não se limitam ao chá, à quermesse ou bazar ou ao jogo de
distracção. Frequentado por Florbela Espanca e Fernanda de Castro, intelectual
e mulher de António Ferro, o ideólogo de Oliveira Salazar, as reuniões são
animadas por Ju, dona do Chalet, que mantém relações de sentimento carnal com
Gabi, Zefa e Maria. A irmã de Luís Lencastre, Rosinha, participa nestas soirées,
e o advogado sai de Lisboa e dirige-se para o chalet, em Sintra, onde
desaparece.
Ju, avassalada por uma sociedade puritana, fundada nos bons
costumes da família burguesa, e por uma ideologia salazarista nascente, baseada
na tripla instituição moral purista de Deus, Pátria e Família, fecha o chalet
de Sintra e parte para o estrangeiro.
Sob a repressão política, a censura intelectual e a pobreza
social, Portugal dormirá o longo sono de 48 anos do Estado Novo, até
ressuscitar no dia 25 de Abril de 1974 e as novas Jus não precisarem de
exilar-se para darem livre curso à sua sexualidade.
O Chalet das Cotovias,
Parsifal, 332 pp., 14,94 euros.
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