FERNANDO MORAIS GOMES
“Chove
lá fora. Maldita serra, toda a noite tossi, gotejou no meu cómodo. Tal o fim dum
Bragança, enjaulado numa enxerga insalubre, e tolhido de toda a acção. Pedro
levou de vencida, o infame, néscio e aleivoso, por certo se diverte agora com
Maria Francisca, a rameira, que com seu esposo e rei nunca fornicou, e donzela não casou.
Louriçal trouxe uma tisana. Detesto estas tisanas, querem-me prostrado e febril,
neste esconso húmido. Os Açores aumentaram-me as febres, os pulmões, purulentos
quebram-me o ânimo. Abomino estas paredes, deixam-me doido, doido! Ontem a
carne tinha um sabor estranho, veneno por certo, torcem pela minha perdição. Sou um estorvo para o biltre que se senta no trono. Ah! como me fazem falta
Joana e Catarina! Pobre Catarina, tão só em Inglaterra, com Charles, rei tão
desprovido de carácter e nobreza, nenhuma alcova em Londres lhe deve escapar,
só a de Catarina queda fria e triste.
A mãe nunca me entendeu! Piedosa senhora, sempre chorosa por Teodósio e
Joana. Nunca me escutou os prantos, quando a febre me tolheu o corpo e fiquei só,
tremendo e à mercê de todos, Pedro, só ele, nas graças do Paço e dos validos, a
sombra de Pedro, sempre. Ontem ouvi um guarda dizer que esteve aí, caçando na
serra.
Estou à beira dos quarenta, incham-me os olhos,e desespero pelo dia em
que serei presente ao Altíssimo, rei sem reino, marido sem mulher. Vivo entre sombras, escuras, como as ladeiras de
Sintra. Como fiquei tolhido o dia em que fui aclamado, e Sousa Macedo desdenhou
de mim, e exaltou meu pai, só para me humilhar! E Francisco de Faro, bajulador
sinuoso, captando os favores da mãe, e intrigando com Cantanhede. Onde estarão
agora, os dois?
Em cárcere quase toda a vida vivi, todos me tolheram o andar, ainda infante, quando
da janela via os filhos dos criados divertindo-se no Paço, e sem dó me
impeliam para a gramática e o altar. Mateus, o filho do cocheiro, que saudade
das furtivas correrias em Alfama, atirando pedras aos almocreves. Sempre o
desejei! Como era viril o seu sexo, e o meu avaro em tamanho, quis Deus a mim
deixar inacabado. E António. Meu bom António, o único amigo que tive, onde
estará agora? Desespero pelo seu cabelo louro, seus ombros fortes, o calor do
seu corpo cheirando a estábulo, ah! Conti, o dotado príncipe dos bordéis. Até
ele me tiraram do Paço. Recordará ainda a Maria Parda, da Rua do Tijolo, em
cujos peitos se ia asfixiando, de grandes que eram? Ou a sova que mandei dar num
juiz dos órfãos, por me não ter reconhecido certa noite, em Alcântara? Pudesse
voltar atrás e a meus amigos sem estirpe teria feito condes, e às mulheres da vida,
marquesas, que as outras o não são menos, e mais feias.
Apontaram-me despropósitos, porém mais debochado não é o usurpador que
captura o trono e esposa de seu irmão, e corrompe os físicos para que lhe
apontem maleitas no corpo, mentindo sobre o seu poder de procriar? Acaso as mulheres de mim estivessem longe, Beatriz
de Moura se teria sangrado a si própria, quando sofri de aleijão, para que só
me não sentisse, sendo eu o sangrado? E Filomena de Milão, as mais belas e
sabedoras mãos que em homem tocaram, paraíso carnal a que nem frei Agostinho
resistiu, quando ajoelhada lhe suplicou a bênção?
Ouvi a um guarda que o conde de Odemira foi nomeado para o Desembargo do
Paço. Desonrado seja, e amaldiçoados os seus, intrigando junto de minha
mãe, sugerindo açoites, e para que de mim apartassem o meu estimado António. Jerónimo de Ataíde perguntou por mim, disse-me o
chefe da guarda. Meu bom amigo, como sinto a sua falta. A semana transacta
contei as voltas que dei neste quarto infernal. Noventa e seis. Comecei a
contar as formigas em carreiro, subindo às chaminés do Paço. Como gostaria de
ser uma delas, trepando, e escapulindo para a serra, apedrejando as beatas à
porta da missa, e roubando fruta como vulgar camponês. Rei do cárcere, eis o
que sou, exilado em meu próprio Reino. Antes a morte!
A mãe nunca me perdoou tê-la afastado da regência. Não mais a vi, recolhida
aos Agostinhos Descalços. Morreu com rancor. Rancor! A bondosa Luísa de Gusmão
não podia ter cedido ao rancor, é impróprio de rainha, forte com os fracos e fraca
com os fortes. Partiu já. Partiram todos, e eu mais só, morto, mas insepulto.
Acaba de passar um rato. Acho que o vou fazer conde, rei que sou deste
quarto, sala do trono do meu mando. Ontem nomeei marquesa uma barata.
Marquesa de Sintra. Soa bem. Jurou-me fidelidade. Os esbirros de Pedro vão
ficar possessos, o vitorioso de Elvas e Montes Claros respira ainda, acicatado
pela raiva. Por pouco tempo, temo, que os males da alma quebrantam o corpo.
Corvos negros pousaram ontem no beirado, mau presságio.
A tinta está a acabar, ardem-me os olhos. Nos Açores podia caminhar à
beira mar. Tempo de mais uma volta, noventa e sete. Os homens de Cadaval
patrulham, há nove anos que assim é, oiço-lhes as botas servis e os grunhidos
boçais.
Hoje cuspi sangue. O físico sangrou-me, mas sinto que o meu corpo se fina.
Seja. Noventa e sete vezes amaldiçoados, Pedro e Maria Francisca,
vassalos de Belzebu. Aos vis, até o perdão e a justiça parecem vis. Os
títeres apenas gostam de si próprios.
Arrefece. O rato tornou a passar. Sorriu-me, o novo conde. Fiz-lhe uma
vénia, magnânimo, agradeceu, dei-lhe a mercê dum naco de pão. Um rei deve zelar
pelo bem dos seus súbditos!
Sintra, aos 7 de Abril do Ano da
Graça de 1683.
Afonso,
Portugal Rex”
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