MIGUEL REAL
Miguel Real faz a crítica do último livro da escritora radicada em Sintra Filomena Marona Beja
Romance sem intriga, O Eléctrico 16, de Filomena Marona Beja, constitui um notável fresco da vida popular de Lisboa entre as décadas de 1950 e a era informática do romper do século XXI. Centrado em torno da família de Orlando e Arlete do (falso) bairro operário da Madre Deus, tomando como ponto de vista narrativo a vida da filha Helena, desenha-se, capítulo a capítulo, uma Lisboa de mentalidade eclesial, fechada, política e familiarmente autoritária, institucionalmente totalitária, rompida, após o 25 de Abril de 1974, por uma Lisboa europeia, cosmopolita, de costumes profanos, representada pela mentalidade de Yolanda e de Joana, filha e neta de Helena.
Romance sem intriga, O Eléctrico 16, de Filomena Marona Beja, constitui um notável fresco da vida popular de Lisboa entre as décadas de 1950 e a era informática do romper do século XXI. Centrado em torno da família de Orlando e Arlete do (falso) bairro operário da Madre Deus, tomando como ponto de vista narrativo a vida da filha Helena, desenha-se, capítulo a capítulo, uma Lisboa de mentalidade eclesial, fechada, política e familiarmente autoritária, institucionalmente totalitária, rompida, após o 25 de Abril de 1974, por uma Lisboa europeia, cosmopolita, de costumes profanos, representada pela mentalidade de Yolanda e de Joana, filha e neta de Helena.
Filomena Marona Beja é
uma escritora singular. Como os livros de Teolinda Gersão, os seus romances são
constituídos por parágrafos soltos, relativamente curtos, operando mais pela
sugestão do que pela descrição, intermediando diálogo e narração em períodos
brevíssimos, compondo blocos de textos que, em jeito de puzzle, se vão organizando na mente do leitor, reconstruindo este a
cronologia e a ordem estrutural que de
raiz parecem carecer à narrativa.
Mais do que o estilo,
habitual na autora desde o seu primeiro livro, As Cidadãs (1998), seguido de uma obra já extensa, de que nos
permitimos salientar A Sopa (2004,
Grande Prémio de Literatura DST), narrativa sobre os imigrantes africanos e do
leste europeu, A Cova do Lagarto
(2007, Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de
Escritores), sobre a vida de Duarte Pacheco, e Bute Daí, Zé (2010), sobre o assassínio do militante de esquerda
José Carvalho por um bando de skinheads, o que singulariza este seu novo romance face
aos anteriores é justamente a capacidade de elisão de acontecimentos relevantes.
Com efeito, ao longo do
romance nada parece acontecer e, no entanto, tudo acontece. Desdobrado em dois
tempos, a infância e juventude de Helena e a sua actual fase de mãe a avó,
evidenciando uma interpenetração bem conseguida dos dois períodos cronológicos,
O Eléctrico 16, no seu estilo fragmentário
e caleidoscópico, não possui o conjunto de picos de acontecimentos relevantes
que caracterizam o romance clássico. Existe mesmo uma rarificação de
acontecimentos. Descrevem-se - apenas - situações banais do quotidiano: Helena,
economista, limitada na sua mobilidade devido a um acidente de viação,
trabalha no computador, Joana chega a casa vinda da escola, tem fome, come
tostas e iogurtes, Fernanda, a empregada, aspira as alcatifas e os tapetes do
andar superior, uma situação, uma palavra, por vezes um nada desperta memórias,
Helena, estudante de liceu, recorda as viagens no eléctrico com as amigas, os
galanteios de Victor, a indiferença de Joel, a solicitude de José Emílio, regressa-se
ao século XXI, Yolanda, a filha, dona de um atelier permanentemente falido,
regressa a casa com o novo companheiro, Dr. Gonçalo, cumprimentam-se, sobem ao
quarto, amam-se ou zangam-se, este cativa a enteada com dinheiro e objectos
luxuoso, exige grades nas janelas do rés-do-chão, Fernanda despede-se,
regressará no dia seguinte...
No entanto, uma palavra
lançada, uma notícia lida no "Diário Ilustrado", um conselho da mãe
Arlete, um atraso do pai Orlando, um desejo de Helena evidenciam que o tempo se
moveu, a sociedade evoluiu e novos costumes emergiram, rasgando a normalidade
familiar, dando conta de situações socialmente problemáticas exteriores à
família. Como horizonte enquadrador da totalidade do romance: o amor
permanentemente frustrado de Helena por Joel.
Neste sentido, repetimos,
nada parece acontecer e, no entanto, tudo acontece: a vida familiar e
comunitária, aparentemente imóvel, desenha-se e adensa-se como pano de fundo do
único acontecimento relevante de O
Eléctrico 16: as eleições presidenciais de 1958 e a presumida derrota do
general Humberto Delgado. Todas as múltiplas situações quotidianas desembocam
neste ponto nevrálgico da narrativa, como se ele tivesse historicamente
constituído o nó central da modernização de Portugal. Após a presumida derrota
de H. Delgado todos os adolescentes (Helena e as três amigas, Joel, José
Emílio, Victor) se tornam adultos, entram na universidade ou fogem para o
estrangeiro, desencadeia-se a Guerra Colonial, a luta dos estudantes universitários
e, finalmente, acontece o 25 de Abril de 1974 - Portugal liberta-se da ditadura
do Estado Novo.
O
Eléctrico 16,
Divina Comédia, 261
pp., 16,90 euros.
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