segunda-feira, 1 de julho de 2013

A escultura


GONÇALO NUNO NEVES
 
Que desespero! Que calor! Quanto tempo terei eu até conseguir produzir a mais bela das esculturas; o mártir da arte esculpida e apóstolo da sua própria significação?!...

Estou nu, proporcionando o meu devir mortuário. Quanto não pagava por uma mortalha, embora com outra finalidade!: a de me proteger dos raios solares deste deserto e salvaguardar-me mais uns minutos na continuação da vida. Não por viver mais tempo para não morrer mais cedo, mas para viver mais tempo para que surja a ideia brilhante de uma escultura única que transmita ao mundo, só pela imagem e forma, a realidade de uma ideia que ainda não tive; dessa ideia brilhante que, só por si, contém a exclusividade de um acto que ainda não foi feito.

Tenho mesmo muito pouco tempo para tal empreendimento. Já cuspi e derramei a minha saliva sobre a areia, de maneira a unir as partículas num conjunto alargado das mesmas – talvez uma tentativa simbólica de exaltar o Particular no Universal. Mas não consegui fazer da areia barro, nem tão-pouco originar argamassa! Que desilusão! Que intensidade positiva de graus!! Quanto tempo ainda terei?!...

Lágrimas cerebriformes caíram sobre um último aglomerado “ensalivado” de partículas de pequenas pedras desgastadas pelo tempo e pelo espaço de outras outrora enormes. Deu-se um certo brilho linear desde os meus olhos até ao aglomerado, pois assim tinha pensado ter tido a tal ideia brilhante. As lágrimas fizeram-me reparar, não na minha palidez de espírito, mas no rosado de todo o meu corpo. E isso contribuiu para que me sangrasse, porque era o terceiro elemento numa trilogia compartilhada pelo sal. Veria assim “conservada” a minha ideia.

Mas não! Novamente dores de angústia vasculharam todo o volume da minha existência! Nem com a pasta de sangue consegui erguer uma só estátua, um só busto, nem um pequeníssimo baixo-ou-alto-relevo. Rapidamente o sangue secava, dilatava e juntava-se às partículas, contribuindo para a expansão do deserto. As lágrimas começaram até a enxugarem-se antes mesmo de existirem. Quanto à saliva, já nem sabia se isso era possível!...

Foi então que, assistindo ao meu estado deplorável – que recuso avidamente em descrevê-lo –, me apercebi de que era eu a escultura. Era a forma desviante na forma dominante. Estava realçada a ideia brilhante e a consequência era a acção contínua da erosão sobre mim; eu era o representante do desgaste, da decomposição da matéria no ciclo do tempo.

E tudo o que fiz foi “disformar-me” em tortulho, como símbolo do meu devir: da representação da ideia brilhante.

“ESCULTUREI-ME”!!!...
  

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