GONÇALO NUNO NEVES
Que desespero! Que calor! Quanto tempo terei eu até conseguir
produzir a mais bela das esculturas; o mártir da arte esculpida e apóstolo da
sua própria significação?!...
Estou nu, proporcionando o meu devir mortuário. Quanto não
pagava por uma mortalha, embora com outra finalidade!: a de me proteger dos
raios solares deste deserto e salvaguardar-me mais uns minutos na continuação
da vida. Não por viver mais tempo para não morrer mais cedo, mas para viver
mais tempo para que surja a ideia brilhante de uma escultura única que
transmita ao mundo, só pela imagem e forma, a realidade de uma ideia que ainda
não tive; dessa ideia brilhante que, só por si, contém a exclusividade de um
acto que ainda não foi feito.
Tenho mesmo muito pouco tempo para tal empreendimento. Já
cuspi e derramei a minha saliva sobre a areia, de maneira a unir as partículas
num conjunto alargado das mesmas – talvez uma tentativa simbólica de exaltar o
Particular no Universal. Mas não consegui fazer da areia barro, nem tão-pouco
originar argamassa! Que desilusão! Que intensidade positiva de graus!! Quanto
tempo ainda terei?!...
Lágrimas cerebriformes caíram sobre um último aglomerado
“ensalivado” de partículas de pequenas pedras desgastadas pelo tempo e pelo
espaço de outras outrora enormes. Deu-se um certo brilho linear desde os meus
olhos até ao aglomerado, pois assim tinha pensado ter tido a tal ideia
brilhante. As lágrimas fizeram-me reparar, não na minha palidez de espírito,
mas no rosado de todo o meu corpo. E isso contribuiu para que me sangrasse,
porque era o terceiro elemento numa trilogia compartilhada pelo sal. Veria
assim “conservada” a minha ideia.
Mas não! Novamente dores de angústia vasculharam todo o
volume da minha existência! Nem com a pasta de sangue consegui erguer uma só
estátua, um só busto, nem um pequeníssimo baixo-ou-alto-relevo. Rapidamente o
sangue secava, dilatava e juntava-se às partículas, contribuindo para a
expansão do deserto. As lágrimas começaram até a enxugarem-se antes mesmo de
existirem. Quanto à saliva, já nem sabia se isso era possível!...
Foi então que, assistindo ao meu estado deplorável – que
recuso avidamente em descrevê-lo –, me apercebi de que era eu a escultura. Era
a forma desviante na forma dominante. Estava realçada a ideia brilhante e a
consequência era a acção contínua da erosão sobre mim; eu era o representante
do desgaste, da decomposição da matéria no ciclo do tempo.
E tudo o que fiz foi “disformar-me” em tortulho, como símbolo
do meu devir: da representação da ideia brilhante.
“ESCULTUREI-ME”!!!...
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