sexta-feira, 5 de julho de 2013

As duas estradas de Sintra

DANIEL ANDRÉ 
Estudioso de História Local e autor do site Serra de Sintra

Como dois braços estendidos num gesto protector ou para um abraço amigo, as duas estradas se abrem no próprio coração de Sintra e vão caminhando lado a lado do vale até além de Colares, onde se ligam e formam uma única estrada, que continua em procura do mar. São a definição de duas épocas com os seus costumes, os seus sentimentos e o seu carácter.
Para as distinguir chamo a uma Estrada Nova e à outra a Estrada Velha.
A Estrada Nova segue quase sempre ao lado da linha dos carros eléctricos cortando vinhedos dourados e povoações risonhas, continua a correr toda apressada, toda cheia de Sol, toda em curvas audazes, enchendo o espaço com o ruído dos automóveis, que inundam de fumo e cheiro a gasolina a paisagem idealmente verde. Aqueles que a percorrem dentro dos seus automóveis de luxo, quase não lhe admiram a sua beleza maravilhosa, nem notam as suas sombras fugazes e as suas claridades profundas, tudo é velocidade, tudo é ruído, tudo é pressa de chegar ao fim.
A Estrada Velha pelo contrário é toda tranquilidade, doçura e que encanto tem o murmúrio das suas fontes e a gravidade dos seus muros vestidos de hera. Há nela recolhimento e devoção. Há um carinho infinito na sua fresquidão e uma profunda poesia no seu silêncio, que parece fazer-nos confidencias, que nos beija e nos consola. Nela tudo é espiritual, tudo nos eleva, tudo nos dá pensamentos bons, puros e saudáveis.
A Estrada Nova é bela, mas é linda a Estrada Velha, digo eu, todas as vezes que a vejo recortada entre o arvoredo, e ela em agradecimento gentil, conta-me então uma história nova ou recorda-me algumas já um pouco apagadas no nevoeiro da memória.
Assim numa tarde ela contou-me uma história tão encantadora na sua simplicidade e tão sugestiva na sua quase generalidade. Tudo parecia dormir nos campos nas hortas e nos pomares e dentro das casas, cujas janelas semicerradas as defendiam da ardência do Sol.
Num portão de uma dessas casas, perdida entra árvores de fruta e tufos de buxo bem aparados, um homem de libré agaloado, batia vigorosamente. Um moço de lavoura foi saber o que pretendia o recém-chegado.
- Vá chamar o dono da casa- disse ele levando a mão à aba do alto chapéu, onde uma insígnia dizia da sua qualidade.
O dono da casa acorreu um pouco intrigado com a insólita visita; era este um homem alto a orçar pelos cinquenta anos, robusto e direito, e toda a sua pessoa denunciava um desses camponeses de alma lavada e coração de oiro, para quem a terra que cultivava encerra todas as ambições de vida e a quem o trabalho proporciona todos os prazeres do Mundo.
- Quem é, e o que deseja?- interrogou ele com ar esperto e delicado.
- Sou o batedor de Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Maria Pia- respondeu o desconhecido - e venho do mando da mesma Real Senhora comprar um cabaz de peras das melhores que tiver. Sua Majestade ficou com a aia sentada debaixo duns pinheiros, ali para os lados da pequena fonte, e como está muito calor, apetece-lhe merendar fruta fresquinha. E informaram-me que nesta Quinta poderei encontrar o que há de melhor nesta região.
O lavrador estremeceu de prazer e um vivo colorido tingiu as suas faces queimadas das nortadas e dos raios solares, este homem tinha orgulho em possuir nos seus pomares os melhores frutos conhecidos, tendo muitas vezes conseguido produção de magníficos exemplares, nascidos de enxertias diversas que os seus conhecimentos lhe permitiam realizar.
Com o olhar rebrilhante de satisfação disse ao batedor que o acompanhasse e tomando um largo cabaz dirigiu-se ao longo da propriedade onde uma infinidade de pereiras ofereciam a beleza de uns frutos tão perfeitos, que o rapaz ficou boquiaberto a olhar para elas. Mas o senhor José- assim se chamava o lavrador- não se dirigiu para essas árvores, foi sim direito a uma pereira pequena ainda novinha, mas carregada de uns frutos duma forma preciosa cuja pele cor de água do mar parecia incrustada de fabulosos topázios.
-Olhe meu amigo- ia dizendo ele enquanto colhia as peras- ainda ninguém provou destes frutos, é uma criação obtida por mim, e diga à senhora Dona Maria Pia, que em parte alguma do reino encontrará coisa parecida.
- Está bem. E quanto lhe devo por estas maravilhas? – pergunta a sorrir o batedor quando viu o cabaz cheio de peras.
O Sr. José ergueu-se a toda a altura da sua estatura e disse:
- A Rainha não me deve nada. Tudo o que está nesta casa e nesta Quinta é como se lhe pertencesse. Só lhe peço licença para pôr o seu nome a estas pêras, pois ainda não estão baptizadas.
Com um afável obrigado retirou-se o criado enquanto o bom lavrador ficava sorridente a vê-lo afastar-se com o seu esplêndido presente, e ao entrar em casa murmurava entre orgulhoso e feliz que nunca a Senhora Maria Pia comeu peras como aquelas.
Passaram-se uns quinze dias e quando envolvido no sol em brasa o senhor José, diante da sua árvore querida, endireitava uma pernada mais tombada com o peso da fruta ou tirava uma folha menos perfeita, abanando a cabeça com imensa ternura, um sonoro “boa tarde” fê-lo voltar-se precipitadamente.
-Ah! É o senhor outra vez- disse ele jovialmente.- Então o que disse a Rainha a respeito das peras que lhe levou no outro dia?
- O que ela disse não sei, mas o que é verdade foi que hoje mandou buscar peras iguais às outras e ordenou que lhe dissesse que lhe dá licença para por o seu nome a tão lindos frutos. Igualmente lhe manda isto em agradecimento- concluiu estendendo-lhe um pequeno embrulho.
Uma nuvem cheia de humidade embaciou os olhos do camponês enquanto sumidamente balbuciava um “muito obrigado”. Mas logo acrescentou “ e juro que destas peras ninguém comerá a não ser a Senhora Rainha”.
À noite quando o senhor José se recolheu, ao desmanchar o embrulho pequenino que o batedor lhe tinha entregue, duas libras de oiro brilharam em sua mão calosa de trabalhador.
Desde então, quando no Verão a Rainha Senhora Dona Maria Pia estava no seu Paço de Sintra, ou a sua carruagem passava pela Estrada Velha, era certo aparecer o seu batedor para lhe ir buscar um cabaz de peras Maria Pia, frutos deliciosos que ninguém conseguia provar sequer.
Passados alguns anos, e quando num dia triste a Senhora Dona Maria Pia foi para o exílio, o velho José, ainda robusto e desempenado, de enxada ao ombro, dirigiu-se sozinho e cabisbaixo para o lugar onde estava a árvore que durante tantos anos lhe merecera amor e carinho desvelados, diante dela parou.…e enquanto dos olhos as lágrimas lhe saltavam em grossas bagas, a enxada batia furiosamente a terra em volta da lindíssima pereira.
Por fim, sobre a terra revolta e triturada, a árvore tombou exangue e ficou como a chorar também.Docemente soluçante, a voz do José dizia:
- Eu tinha jurado que só a Rainha comeria destas peras!... Tinha jurado!...
E quando oiço estas histórias dum tempo que não vivi, fico a pensar em como são diferentes as duas estradas de Sintra. A Nova cheia de entusiasmo e alegria…e a Velha que murmura na saudade.
 

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