CARLOS MANIQUE DA SILVA
Francisco Costa (1900-1988), poeta, romancista, historiador…
– alma, na verdade, multifacetada –, foi um sintrense amante da sua vila natal.
Na cenografia de Sintra veio, aliás, a colher inspiração para a obra literária
que publicou ao longo de seis décadas. No entanto, a sua produção escrita,
sobretudo o romance, foi também marcada por experiências extrafronteiras.
Penso, designadamente, nas viagens de estudo que realizou a Roma e a Paris, a
partir dos anos de 1950. De facto, encontramos ecos dessas viagens nos romances
Cântico em Tom Maior (1955) e Escândalo na Vila (1964), para citar apenas dois
exemplos.
Mas é nos cenários de Sintra que Francisco Costa vai buscar a
seiva maior para a escrita ímpar que lhe reconhecemos. A este respeito, terá
sido importante o espaço privilegiado onde viveu a maior parte da vida. De
facto, “a casa”, situada na rua
Sacadura Cabral, ao Morais, “mesmo em
frente da serra verde”, foi idealizada pelo arquiteto Raul Lino, que para o
poeta procurou criar o recato necessário para os labores de espírito.
O claro entendimento do sítio – tratava-se, na aceção de Raul
Lino, de interpretar o “espírito do lugar”
–, bem como a elaboração do projeto de acordo com as necessidades do utilizador
constituem aspetos marcantes da obra arquitetónica em questão (concebida em
1926). Não são, de igual modo, de ignorar alguns dos traços idiossincráticos da
produção de Raul Lino (o recurso a materiais tradicionais, a utilização do
alpendrado…).
A cumplicidade entre o poeta e o arquiteto, estabelecida a
propósito da discussão do projeto, pode ser intuída na correspondência trocada
entre ambos. Atente-se, por exemplo, numa carta que Raul Lino dirigiu a Francisco
Costa, curiosamente em 28 de maio de 1926:
Exmo. Sr.:
Ao prazer de ter feito
o conhecimento de V. Ex.ªjunto agora o gosto de poder ler a sua obra. Devo isto
à gentilíssima oferta a que se dignou juntar frases muito penhorantes para mim
e palavras de excessiva modéstia a seu próprio respeito. De ambas as coisas
posso afirmar que são imerecidas.
Procurarei dar alguma
satisfação aos seus novos sentimentos no projeto que vou elaborar para a casa
de V. Ex.ª pedindo à musa da arquitetura – que algumas vezes tem sido benévola
para mim – que me inspire e que supra as falhas que V. Ex.ª terá fatalmente de
descobrir.
Deste seu admirador
Atento e obrigado
Raul Lino
(Espólio
pessoal de Francisco Costa)
Antevista tal cumplicidade, não surpreende que Raul Lino
tenha, de facto, consagrado especial atenção às necessidades do utilizador. O
resultado transparece mais tarde na própria obra do escritor, que em páginas
dos romances A Garça e a Serpente (1943), Primavera Cinzenta (1944), Cárcere
Invisível (1949) e Promontório Agreste (1973) recorre aos cenários de sua casa,
ou deles experienciados:
Passaram, pouco depois,
da penumbra da sala ao alpendre cheio de ouro […] Estavam os três diante do
vasto panorama. A serra, vestida de veludo verde, ondulava sobre o azul muito
puro, mordia-o no alto com os dentes do seu castelo mourisco, e ia esmorecer ao
longe nos retalhos verdes e castanhos da planície, que se estendiam até ao mar
anilado. Perpassava uma aragem macia. Um comboio apitou algures, no silêncio da
terra.
(Francisco Costa, A Garça e a Serpente, 1969, 4.ª edição, p.
229)
Esse panorama é frequentemente descrito do alpendre da casa,
porventura um dos espaços vivenciais mais importantes para Francisco Costa. Com
efeito, nele passa muitos momentos entregue aos seus pensamentos e reflexões,
entrecortados por leituras diversas, por olhares cravados no horizonte… Tal
espaço constitui, de resto, fonte de inspiração, conforme pode ser entrevisto
em Diálogos Estéticos:
Durante momentos, o meu
visitante ficou-se imóvel, com o olhar fito nas brasas que morriam. Mas de
repente sacudiu-se, pôs-se de pé:
- O seu lume é
fascinante, confesso… Mas as rotativas não param e eu tenho de voltar à cidade…
ou antes à aldeia de mármore e granito, enquanto você aqui fica, na serra da
lua, que hoje é sobretudo serra de névoa.
- Hoje e muitas vezes mais –
observei, encaminhando-o para o alpendre, onde a nossa conversa principiara […]
- Não há dúvida – suspirou ele, como
no primeiro dia. – Aqui podem-se escrever romances e refletir sobre a poesia
deles.
(Francisco Costa, Diálogos Estéticos, 1981 [texto de
1957], p. 196)
De igual modo, em Promontório
Agreste confirmamos a importância do alpendre, como que a assumir um
estatuto autónomo da casa, onde se encontra refúgio e se foge, por assim dizer,
de solicitações exteriores:
Mas o escritor não se
deixou arrastar; e abrindo a sua porta, passou da casa ao alpendre, a fim de
sonhar, em frente da serra da lua, o seu futuro romance – que decerto lhe faria
as costumadas surpresas.
(Francisco Costa, Promontório Agreste, 1973, p. 345)
Hoje, impõe-se preservar a casa onde Francisco Costa e a sua
família viveram ao longo de décadas. É urgente, ao mesmo tempo, atualizar a
memória desse espaço. Fiquemos, por ora, com o sugestivo soneto do poeta:
Quando esta casa, feita
mesmo em frente
da serra verde, ainda
mal se erguia,
e as traves da futura
moradia
eram belos pinheiros,
simplesmente,
houve uma tarde, sob um
sol ardente,
em que o suor em bagas
escorria
da testa dos pedreiros
e fazia
da cal e areia uma
argamassa quente.
Hoje, há paredes contra
os vendavais,
mas é cá dentro que
soltamos ais
nos dias mais aflitos
ou mais duros.
Enquanto gemem
temporais lá fora,
pagamos nós em
lágrimas, agora,
a dor incorporada
nestes muros.
(Francisco
Costa, Última Colheita, 1987, p. 13)