Foto:Zakahia
Cravei-me
numa sepultura rupestre. A pedra não arde; a pedra não é um combustível..
...Parei
o Sol ao meio-dia. Na vertical e exactamente por cima de mim, o Sol brilha
ultras, infras, prós e contras...
O granito
ganhou a minha forma e dimensões... Sente, Sentímetro, sente...!
Imagina-se e
recorre-se à lógica para concretizar a façanha que permanecia em ideia...
Pensamentos dispersos, pensamento disperso.
Acho que não são tão dispersos quanto isso. Se voltar
a reflectir a minha condição em consonância com o que acabei de mencionar como
sendo disperso, fará tudo sentido.
Porque haveria de estar cravado numa sepultura
rupestre?
Foi como que uma regressão à morte do passado; a uma
morte do passado, tendo em conta a existência de outras tantas. Tantas quanto
as crenças num pós-vida.
Só posicionando-me no espaço confinado a um morto
poderia, juntamente com o meu Sentímetro, medir a extraordinária empatia do
indivíduo para com a morte, que, das duas uma: ou vinha buscá-lo ou ele ia ter
com ela. Talvez ambas, daí ter pensado “indivíduo”. Ele preparou-se para ela,
para a receber com pompas, mas sem circunstâncias, porque é intemporal e, por
vezes, imprevisível.
Se é “indivíduo”, ainda está vivo e consciente, agindo
em conformidade com o que acredita; age para-a-morte. Se é “morto”, alguém agiu
por ele.
Seria um dos fenómenos que primeiramente haveria de
desvendar como Antropólogo que partiu em busca de uma investigação espontânea
assim que saiu de casa e encontrou o primeiro túmulo pré-cristão esculpido numa
rocha de granito algures numa cordilheira já devastada pelo fogo dos pirómanos
de distúrbios da personalidade e/ou piromaníacos de profissão sabe-se lá
economicamente porquê!
No fundo, queria saber se a sepultura era esculpida
pelo próprio, preparando-se simbólica e fisicamente para a morte, ou se o
faziam por ele, conjugando-o colectivamente numa crença a favor da espécie que
culturalmente representava, ainda que camuflado pelo anonimato.
No entanto, o anonimato é a forma de identidade da
espécie, renunciando o indivíduo. Ainda para mais quando a forma esculpida na
pedra retrata a imagem de um defunto humano.
Bom, poderei dizer afinal que o destino do cadáver é, à
posteriori, a rocha desfragmentada pelo utensílio e preenchida novamente
por um ritual colectivo? Tudo parece indicar que sim. O facto de haver algumas
quantas tumbas rupestres já indica para uma crença conjunta. Mas o mais
explícito de todos os factos foi a sepultura rupestre isolada em alguns
quilómetros de distância das necrópoles – das duas – que encontrei no decurso
da minha investigação espontânea. Induziu-me logo para a mais provável das
hipóteses: a de que alguém agiu por ele. Pois como podia escavar uma sepultura
na pedra quando estivesse morto?! Dããa!! Mas podia ter antecipado como que um
presságio da sua própria morte. Não, não podia! É muito provável que estivessem
de passagem... um certo grupo de seres ainda recém dotados do dom da
hermenêutica... um deles entretanto sucumbiu por uma qualquer razão e os
restantes tiveram de lhe prestar homenagem, tanto pela crença cultural do grupo
a que pertencessem – ou linhagem, clã, totem, etc – ou pela crença colectiva da
espécie (e universal!) de se dar um destino aos mortos que um dia representaram
os vivos; unindo, sob forma de manutenção, toda a espécie humana: os únicos que
enterram os seus mortos, precedendo os ditos enterramentos – ou qualquer outra
forma de destinar os defuntos – de rituais mágico-religioso-simbólicos.
Enfim, não podia mesmo ser o próprio. Caso tivesse
noção da sua própria morte, onde arranjaria forças e disposição para ferir o
granito antropomórfico?!
Mas, no entanto, voltando à realidade – que nunca a
deixei – estou prestes a ser grelhado! De facto, a pedra não arde, e estando
nela inserido também não ardo, mas começa a queimar. O fogo gasoso também se
faz notar nos meus pulmões. Que sorte me espera?!...
Visitei duas necrópoles antes de encontrar o sepulcro
isolado no qual me encontro. Este corresponde em pleno às minhas dimensões
volumétricas. Quando digo em pleno, é-o literalmente, pois o meu volume – o do
meu corpo, claro! – é igual ao volume da ausência da pedra escavada. Que
comunhão original! E eu que sempre pensei que uma sepultura rupestre era uma
alternativa ou substituto às reuniões de mortos nas cavernas! Nem sempre se
podem encontrar grutas! O ventre feminino da Terra-Mãe vê-se agora dividido ou
multiplicado. Multiplicado, porque precisa de mais e mais ovários na manutenção
de si própria, renovando, pela ciclicidade da matéria, a sua própria
existência. Dividido, porque a Natureza é uma só, e o seu útero parcializa-se
na simbologia do ser humano.
Também!, qual é a diferença?!...
Na primeira necrópole observei as campas – se assim se
podem chamar – como se fossem pontos munidos de setas. Não tinham a mesma
direcção e encontravam-se separadas umas das outras, algumas a uma certa
distância, em metros. Conjugando-as num desenho geométrico, pura e
simplesmente, resultava um fractal aleatório. Todos os sepulcros mantinham
fielmente o mesmo modelo como forma: antropomórfica; provavelmente de olhos
postos no céu, de pernas juntas e esticadas, braços a acompanhar o dorso rígido
como a pedra e terra misturada na palha a cobrir de novo o ovo da Terra-Mãe
chamado granito, perfazendo uma breve colina de rocha natural, onde germinasse
o símbolo da espécie.
Ainda assim, não pude esquecer certas respostas
astrológicas de certas épocas especiais que decorrem ao longo dos ciclos
cósmicos. Terá de ficar para uma outra vez, numa altura do ano em que se
registe reciprocidade com o terreno – o que já não será feito por mim, dadas as
condições actuais da minha situação.
Uma coisa é certa: colocados virados para o céu,
sabendo que à noite existem pontinhos reluzentes por cima das suas cabeças que
pensam e ritualizam fenómenos, quem é que não vê a relação?!
Contabilizei dezanove sepulturas na primeira necrópole
a que presenciei. Tirei-lhes as medidas em profundidade, largura, comprimento e
raio do centro da rocha nas que se encontravam perfeitamente esféricas. Medi as
distâncias entre elas. Fotografei tudo e todas em vários planos e
perspectivas...
Maldita erosão! Cobriu verdades, evaporou realidades!
Algumas S.E.P. (Sepulcros em Estado de Putrefacção) poderão ter sido
corrompidos pela erosão. Outros poderão estar escondidos pela florestação –
qual !!? – ou por si só enterradas (duplo ritual mortuário?!)...
Bem, convenhamos que começo a ficar aos delírios. Tudo
o que digo é apenas o que me vou lembrando do que observei. O bloco de notas já
grelhou primeiro que eu. A máquina captadora de instantes duvido que ainda
funcione, bem como o rolo nela contido e os restantes guardados na mochila,
porque não se encontra comigo; essa já se foi com “os porcos”! Ficou “lá” fora,
servindo como ajudante-combustível. Além de que a sua soma ao meu volume não
permitia a tal comunhão original...
Contei dezanove na primeira necrópole e dezoito na
segunda num perímetro de x metros até onde se encontrassem rochas de granito
prováveis de conter sepulturas rupestres. Mas criei uma estimativa até vinte e
dois/vinte e cinco de média – dado que não andei a escavar e por isso podem
haver mais. Mais a erosão: a maldita, mas necessária, inimiga do investigador.
E é preciso não esquecer que existem várias formas de erosão; várias maneiras
de iludir o que se quer saber.
O engraçado é que na segunda necrópole, onde consegui
descobrir dezoito, embora possam existir mais, encontrei dois pares de
sepulturas paralelas, onde um dos pares representava uma situação anormal.
Para além de pôr em causa as questões de género e
também de estatuto social, fiquei a reflectir no sentido do sentido contrário
em que se prostravam as duas sepulturas paralelas. Enquanto que os pés de uma
aparentava a cabeça da outra, pude percepcionar de que se tratava – ou tratou –
de um casal. Como distingui-los é que era o problema, pois eram quase rigorosamente
idênticos. Foi o quase que me levou a concluir o inevitável. Por sorte das
evidências, metade das dezoito eram antropomórficas mas sem o delineamento dos
ombros, o que fazia com que não tivesse pescoço e a cabeça não ganhava a forma
que lhe era devida. Por azar da EROSÃO, alguns dos túmulos tiveram a cabeça bem
definida. Tiveram, eu disse bem!
Bom, partindo do princípio de que um macho humano era
bem mais dotado fisicamente do que a fêmea da mesma espécie (a humana, claro!),
posso sempre induzir-me – talvez em erro – de que as rochas necrolátricas de
maiores proporções seriam destinadas a corpos proporcionais. Enfim, já não sei
nada, nem em como pensar...
O facto de ter encontrado uma sepultura... aliás, duas
– uma em cada das necrópoles – de dimensões reduzidas, o meu poder de dedução
levou-me a crer numa criança. E se fosse de um anão, dado que as deficiências
físicas, carências alimentares e patologias várias seriam mais acentuadas numa
altura em que a Medicina era a própria Natureza!?
Será, em princípio, de crianças, mas é preciso,
sempre, tentar elaborar todas as hipóteses possíveis, prováveis e viáveis...
Onde é que eu ia? Oops!! Olha agora, perdi-me!...
Ah, já sei!!... humm... quer dizer...
Se eu tivesse a escrever era só voltar ao início das palavras
e voltava a ter um bom discernimento...
Ai quando o meu Sentímetro começar a fazer cálculos!!
Aí é que vai ser e ninguém o pára até concluir a sua missão!
É espantoso como ele penetra no “espírito” da coisa em
si; na essência da substância de suporte do ser. Tem de ser no devido
instante...
Bem, se os indivíduos, nessa altura – na sua altura –
preferiam pregá-los numa rocha eruptiva e granular do que simplesmente
“deitá-los” por terra, é porque em parte se deve ao reduzido número de
elementos de um grupo. Ou seja, a morte fazia-se notar mais intensivamente,
porquanto não o fazia quantitativamente. O ritual era mais sentido e emocional,
como que para equilibrar e apaziguar os sofrimentos da perda. É natural, é
natural! Vivem menos tempo, são menos e ainda por cima os laços de afectividade
teriam obviamente de ser mais fortes, tendo em conta a árdua tarefa de
sobreviver no quotidiano seco, árido, conflituoso, difícil ainda ligado à
Natureza...
É ou não piada a falta de consciência das ligações
simbólicas? O facto de os cravarem em granito, sendo esta rocha de origem
vulcânica e plutónica, isto é, uma rocha que vem do magma, das profundezas do
planeta, indica uma nova erupção – simbólica? –, portanto, uma renovação pela
purificação simbólica da destruição. É o voltar à pedra que veio do centro da
germinação existencial. Tudo isto processado pelos métodos naturais: chuva,
vento, decomposição vegetal da matéria morta, da luz, etc.
O homem podia não compreender estas palavras, nem
tão-pouco ter escrita – prova do anonimato –, mas claramente tinha em sua posse
a ideia. É preciso não esquecer a intimidade dos “objectos hermenêuticos” para
com a Natureza naquelas épocas; os seus sentidos eram mais apurados. Será isto
falta de consciência simbólica? Bom, eu também não disse quem sofria dessa
falta!...
O que é realmente piada é o nome dado ao planeta mais
afastado do Sol do nosso sistema: Plutão, o nome de uma rocha provida de calor
magmático!
Não sou geólogo, mas lembro-me de ter consultado uma
enciclopédia à procura do granito, pois nesta zona todas as pedras são granito.
Foi talvez a única recolha teórica para esta investida de terreno à procura da
Morte. Sim, porque a revisão de literatura e pesquisa de gabinete é uma segunda
fase!
Sei que o granito é constituído por quartzo e
feldspato alcalino e, na maioria das vezes, mica. São os constituintes que
fazem desta pedra um ser granular, preciosamente desfragmentável.
Por acaso recolhi uns fragmentos de feldspato, mas a
caixinha onde os guardei ficou na mochila. Bad luck!!
A título de curiosidade, aquando da consulta à
enciclopédia, fiquei a saber que no Brasil, “granito” é uma expressão utilizada
que significa um calor forte depois de uma carga-valente-de-água dirigida pelas
nuvens. Nem digo mais nada!...
Enfim, o certo é que a pedra não é um combustível,
mesmo sendo um objecto ígneo.
No entanto, está tudo a arder à minha volta num
círculo perfeito! “No centro está a virtude!”, porque a bendita rocha não arde.
Mas... que esquisito!! Como é que arde o fogo sem nada já para queimar nesta
área geográfica completamente devastada por chamas de outrora?! Qual o
combustível teimoso que ousa assombrar-me?! Não percebo!!!...
Ai, Sentímetro, quando não é dor é prazer! Por vezes a
dor é prazer e o prazer dor. E neste momento sinto uma neutralidade que me faz
tomar qualquer valor. Também, só assim é que o meu Sentímetro funciona!
Não é por acaso que assim é e que o digo. Só o
conhecimento daquilo a que se costuma dar o nome de mistério, ou seja, a
existência, é que permitiu, permite e, eternamente, continuará a permitir ao
ser humano adquirir valores, elaborar juízos, construir respostas e
desmistificar num ciclo vicioso o indecifrável da vida. Só se consegue
apreender a essência do que quer que seja pela aquisição das suas virtudes,
defeitos, formas, imagens, sentidos, significados; enfim, tomando o lugar do
“objecto” pretendido.
Foi o que eu fiz, ao adquirir o espaço ausente do
granito no qual me encontro. Tomei-lhe a forma, percepcionei-lhe os
significados, reflecti-lhe virtudes e defeitos e adquiri uma imagem de uma
morte do passado. Resumindo, senti a neutralidade de uma acção simbólica da
vida; medi a intensidade, a duração, a altura e o timbre de um sentimento, ora
nobre ora banal do ser humano de outrora...
O Sol continua ao meio-dia e uma linha imaginária
deste até mim, sem desvios nem curvas, exuberantemente, expõe a sua
verticalidade perfeita. Será o Imperador da Luz o culpado das chamas que
devastam o nada?! Como pode o fogo arder sem combustível? Não é só do oxigénio
que necessita! Ou será que este óxido genial tornou a sua existência
inflamável!?
Mas eu respiro, essa é que é essa! Os meus pulmões já
se adaptaram à nova forma gasosa de se respirar. Que ridículo!
Acho que não é assim tão ridículo. Dos meus pulmões,
onde se exerce uma espécie de revolução, sai um ar espesso e sobe até aos céus.
Cada narina envia doses de ar que se condensam ao chegar lá no alto...
Ui!, parece que vai haver uma batalha campal no céu,
numa ordem paralela de nuvens!
Serei um mero espectador da vitória de um dos
aglomerados...
Chocaram! As duas falanges de força aérea homogénea
dos dois exércitos embateram em carga! Colisão terrível!!! A linha vertical que
me iluminava deixou de ser imaginária e passou a ser real: um relâmpago tão
silencioso como o ruído sincero da sua representação “trovadoresca”!
Claro, sou eu a vítima! Já não sucumbo grelhado, mas
electrificado!...
Incrível, o raio deu-me forças e energias além de me
matar!
Afinal, Sentímetro, não me enganaste! Fizeste-me ver o
quão errado estava como Antropólogo dedicado à Morte. Não são sepulturas
rupestres! São reservatórios de água antropomórficos!
Então e as tumbas das supostas crianças? E as do
casal? Que significado? Resposta: a (pro)criação e quantidades racionadas proporcionais
ao desenvolvimento da escassez de cada um.
O clima severo e árido da região levou o homem a
metamorfosear a água em ser divino, o qual só seria compreendido com a mesma
forma que a sua: a humana. A mitologia, não de que do pó se veio e a ele se
retornará, mas que da água se escorre e dela se evaporará, é a premissa
absoluta de uma crença local.
Dito isto e começou a chover. Como o meu corpo
preencheu a rocha, a água não acumulou no devido depósito, mas eu absorvi-a e,
nem grelhado nem electrificado, mas cozido!...
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