quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Antropólogo e o "Sentímetro"

GONÇALO NUNO NEVES 

Foto:Zakahia

Cravei-me numa sepultura rupestre. A pedra não arde; a pedra não é um combustível..

 ...Parei o Sol ao meio-dia. Na vertical e exactamente por cima de mim, o Sol brilha ultras, infras, prós e contras... 

O granito ganhou a minha forma e dimensões... Sente, Sentímetro, sente...! 

Imagina-se e recorre-se à lógica para concretizar a façanha que permanecia em ideia...

Pensamentos dispersos, pensamento disperso.

Acho que não são tão dispersos quanto isso. Se voltar a reflectir a minha condição em consonância com o que acabei de mencionar como sendo disperso, fará tudo sentido.

Porque haveria de estar cravado numa sepultura rupestre?

Foi como que uma regressão à morte do passado; a uma morte do passado, tendo em conta a existência de outras tantas. Tantas quanto as crenças num pós-vida.

Só posicionando-me no espaço confinado a um morto poderia, juntamente com o meu Sentímetro, medir a extraordinária empatia do indivíduo para com a morte, que, das duas uma: ou vinha buscá-lo ou ele ia ter com ela. Talvez ambas, daí ter pensado “indivíduo”. Ele preparou-se para ela, para a receber com pompas, mas sem circunstâncias, porque é intemporal e, por vezes, imprevisível.

Se é “indivíduo”, ainda está vivo e consciente, agindo em conformidade com o que acredita; age para-a-morte. Se é “morto”, alguém agiu por ele.

Seria um dos fenómenos que primeiramente haveria de desvendar como Antropólogo que partiu em busca de uma investigação espontânea assim que saiu de casa e encontrou o primeiro túmulo pré-cristão esculpido numa rocha de granito algures numa cordilheira já devastada pelo fogo dos pirómanos de distúrbios da personalidade e/ou piromaníacos de profissão sabe-se lá economicamente porquê!

No fundo, queria saber se a sepultura era esculpida pelo próprio, preparando-se simbólica e fisicamente para a morte, ou se o faziam por ele, conjugando-o colectivamente numa crença a favor da espécie que culturalmente representava, ainda que camuflado pelo anonimato.

No entanto, o anonimato é a forma de identidade da espécie, renunciando o indivíduo. Ainda para mais quando a forma esculpida na pedra retrata a imagem de um defunto humano.

Bom, poderei dizer afinal que o destino do cadáver é, à posteriori, a rocha desfragmentada pelo utensílio e preenchida novamente por um ritual colectivo? Tudo parece indicar que sim. O facto de haver algumas quantas tumbas rupestres já indica para uma crença conjunta. Mas o mais explícito de todos os factos foi a sepultura rupestre isolada em alguns quilómetros de distância das necrópoles – das duas – que encontrei no decurso da minha investigação espontânea. Induziu-me logo para a mais provável das hipóteses: a de que alguém agiu por ele. Pois como podia escavar uma sepultura na pedra quando estivesse morto?! Dããa!! Mas podia ter antecipado como que um presságio da sua própria morte. Não, não podia! É muito provável que estivessem de passagem... um certo grupo de seres ainda recém dotados do dom da hermenêutica... um deles entretanto sucumbiu por uma qualquer razão e os restantes tiveram de lhe prestar homenagem, tanto pela crença cultural do grupo a que pertencessem – ou linhagem, clã, totem, etc – ou pela crença colectiva da espécie (e universal!) de se dar um destino aos mortos que um dia representaram os vivos; unindo, sob forma de manutenção, toda a espécie humana: os únicos que enterram os seus mortos, precedendo os ditos enterramentos – ou qualquer outra forma de destinar os defuntos – de rituais mágico-religioso-simbólicos.

Enfim, não podia mesmo ser o próprio. Caso tivesse noção da sua própria morte, onde arranjaria forças e disposição para ferir o granito antropomórfico?!

Mas, no entanto, voltando à realidade – que nunca a deixei – estou prestes a ser grelhado! De facto, a pedra não arde, e estando nela inserido também não ardo, mas começa a queimar. O fogo gasoso também se faz notar nos meus pulmões. Que sorte me espera?!...

Visitei duas necrópoles antes de encontrar o sepulcro isolado no qual me encontro. Este corresponde em pleno às minhas dimensões volumétricas. Quando digo em pleno, é-o literalmente, pois o meu volume – o do meu corpo, claro! – é igual ao volume da ausência da pedra escavada. Que comunhão original! E eu que sempre pensei que uma sepultura rupestre era uma alternativa ou substituto às reuniões de mortos nas cavernas! Nem sempre se podem encontrar grutas! O ventre feminino da Terra-Mãe vê-se agora dividido ou multiplicado. Multiplicado, porque precisa de mais e mais ovários na manutenção de si própria, renovando, pela ciclicidade da matéria, a sua própria existência. Dividido, porque a Natureza é uma só, e o seu útero parcializa-se na simbologia do ser humano.

Também!, qual é a diferença?!...

Na primeira necrópole observei as campas – se assim se podem chamar – como se fossem pontos munidos de setas. Não tinham a mesma direcção e encontravam-se separadas umas das outras, algumas a uma certa distância, em metros. Conjugando-as num desenho geométrico, pura e simplesmente, resultava um fractal aleatório. Todos os sepulcros mantinham fielmente o mesmo modelo como forma: antropomórfica; provavelmente de olhos postos no céu, de pernas juntas e esticadas, braços a acompanhar o dorso rígido como a pedra e terra misturada na palha a cobrir de novo o ovo da Terra-Mãe chamado granito, perfazendo uma breve colina de rocha natural, onde germinasse o símbolo da espécie.

Ainda assim, não pude esquecer certas respostas astrológicas de certas épocas especiais que decorrem ao longo dos ciclos cósmicos. Terá de ficar para uma outra vez, numa altura do ano em que se registe reciprocidade com o terreno – o que já não será feito por mim, dadas as condições actuais da minha situação.

Uma coisa é certa: colocados virados para o céu, sabendo que à noite existem pontinhos reluzentes por cima das suas cabeças que pensam e ritualizam fenómenos, quem é que não vê a relação?!

Contabilizei dezanove sepulturas na primeira necrópole a que presenciei. Tirei-lhes as medidas em profundidade, largura, comprimento e raio do centro da rocha nas que se encontravam perfeitamente esféricas. Medi as distâncias entre elas. Fotografei tudo e todas em vários planos e perspectivas...

Maldita erosão! Cobriu verdades, evaporou realidades! Algumas S.E.P. (Sepulcros em Estado de Putrefacção) poderão ter sido corrompidos pela erosão. Outros poderão estar escondidos pela florestação – qual !!? – ou por si só enterradas (duplo ritual mortuário?!)...

Bem, convenhamos que começo a ficar aos delírios. Tudo o que digo é apenas o que me vou lembrando do que observei. O bloco de notas já grelhou primeiro que eu. A máquina captadora de instantes duvido que ainda funcione, bem como o rolo nela contido e os restantes guardados na mochila, porque não se encontra comigo; essa já se foi com “os porcos”! Ficou “lá” fora, servindo como ajudante-combustível. Além de que a sua soma ao meu volume não permitia a tal comunhão original...

Contei dezanove na primeira necrópole e dezoito na segunda num perímetro de x metros até onde se encontrassem rochas de granito prováveis de conter sepulturas rupestres. Mas criei uma estimativa até vinte e dois/vinte e cinco de média – dado que não andei a escavar e por isso podem haver mais. Mais a erosão: a maldita, mas necessária, inimiga do investigador. E é preciso não esquecer que existem várias formas de erosão; várias maneiras de iludir o que se quer saber.

O engraçado é que na segunda necrópole, onde consegui descobrir dezoito, embora possam existir mais, encontrei dois pares de sepulturas paralelas, onde um dos pares representava uma situação anormal.

Para além de pôr em causa as questões de género e também de estatuto social, fiquei a reflectir no sentido do sentido contrário em que se prostravam as duas sepulturas paralelas. Enquanto que os pés de uma aparentava a cabeça da outra, pude percepcionar de que se tratava – ou tratou – de um casal. Como distingui-los é que era o problema, pois eram quase rigorosamente idênticos. Foi o quase que me levou a concluir o inevitável. Por sorte das evidências, metade das dezoito eram antropomórficas mas sem o delineamento dos ombros, o que fazia com que não tivesse pescoço e a cabeça não ganhava a forma que lhe era devida. Por azar da EROSÃO, alguns dos túmulos tiveram a cabeça bem definida. Tiveram, eu disse bem!

Bom, partindo do princípio de que um macho humano era bem mais dotado fisicamente do que a fêmea da mesma espécie (a humana, claro!), posso sempre induzir-me – talvez em erro – de que as rochas necrolátricas de maiores proporções seriam destinadas a corpos proporcionais. Enfim, já não sei nada, nem em como pensar...

O facto de ter encontrado uma sepultura... aliás, duas – uma em cada das necrópoles – de dimensões reduzidas, o meu poder de dedução levou-me a crer numa criança. E se fosse de um anão, dado que as deficiências físicas, carências alimentares e patologias várias seriam mais acentuadas numa altura em que a Medicina era a própria Natureza!?

Será, em princípio, de crianças, mas é preciso, sempre, tentar elaborar todas as hipóteses possíveis, prováveis e viáveis...

Onde é que eu ia? Oops!! Olha agora, perdi-me!...

Ah, já sei!!... humm... quer dizer...

Se eu tivesse a escrever era só voltar ao início das palavras e voltava a ter um bom discernimento...

Ai quando o meu Sentímetro começar a fazer cálculos!! Aí é que vai ser e ninguém o pára até concluir a sua missão!

É espantoso como ele penetra no “espírito” da coisa em si; na essência da substância de suporte do ser. Tem de ser no devido instante...

Bem, se os indivíduos, nessa altura – na sua altura – preferiam pregá-los numa rocha eruptiva e granular do que simplesmente “deitá-los” por terra, é porque em parte se deve ao reduzido número de elementos de um grupo. Ou seja, a morte fazia-se notar mais intensivamente, porquanto não o fazia quantitativamente. O ritual era mais sentido e emocional, como que para equilibrar e apaziguar os sofrimentos da perda. É natural, é natural! Vivem menos tempo, são menos e ainda por cima os laços de afectividade teriam obviamente de ser mais fortes, tendo em conta a árdua tarefa de sobreviver no quotidiano seco, árido, conflituoso, difícil ainda ligado à Natureza...

É ou não piada a falta de consciência das ligações simbólicas? O facto de os cravarem em granito, sendo esta rocha de origem vulcânica e plutónica, isto é, uma rocha que vem do magma, das profundezas do planeta, indica uma nova erupção – simbólica? –, portanto, uma renovação pela purificação simbólica da destruição. É o voltar à pedra que veio do centro da germinação existencial. Tudo isto processado pelos métodos naturais: chuva, vento, decomposição vegetal da matéria morta, da luz, etc.

O homem podia não compreender estas palavras, nem tão-pouco ter escrita – prova do anonimato –, mas claramente tinha em sua posse a ideia. É preciso não esquecer a intimidade dos “objectos hermenêuticos” para com a Natureza naquelas épocas; os seus sentidos eram mais apurados. Será isto falta de consciência simbólica? Bom, eu também não disse quem sofria dessa falta!...

O que é realmente piada é o nome dado ao planeta mais afastado do Sol do nosso sistema: Plutão, o nome de uma rocha provida de calor magmático!

Não sou geólogo, mas lembro-me de ter consultado uma enciclopédia à procura do granito, pois nesta zona todas as pedras são granito. Foi talvez a única recolha teórica para esta investida de terreno à procura da Morte. Sim, porque a revisão de literatura e pesquisa de gabinete é uma segunda fase!

Sei que o granito é constituído por quartzo e feldspato alcalino e, na maioria das vezes, mica. São os constituintes que fazem desta pedra um ser granular, preciosamente desfragmentável.

Por acaso recolhi uns fragmentos de feldspato, mas a caixinha onde os guardei ficou na mochila. Bad luck!!

A título de curiosidade, aquando da consulta à enciclopédia, fiquei a saber que no Brasil, “granito” é uma expressão utilizada que significa um calor forte depois de uma carga-valente-de-água dirigida pelas nuvens. Nem digo mais nada!...

Enfim, o certo é que a pedra não é um combustível, mesmo sendo um objecto ígneo.

No entanto, está tudo a arder à minha volta num círculo perfeito! “No centro está a virtude!”, porque a bendita rocha não arde. Mas... que esquisito!! Como é que arde o fogo sem nada já para queimar nesta área geográfica completamente devastada por chamas de outrora?! Qual o combustível teimoso que ousa assombrar-me?! Não percebo!!!...

Ai, Sentímetro, quando não é dor é prazer! Por vezes a dor é prazer e o prazer dor. E neste momento sinto uma neutralidade que me faz tomar qualquer valor. Também, só assim é que o meu Sentímetro funciona!

Não é por acaso que assim é e que o digo. Só o conhecimento daquilo a que se costuma dar o nome de mistério, ou seja, a existência, é que permitiu, permite e, eternamente, continuará a permitir ao ser humano adquirir valores, elaborar juízos, construir respostas e desmistificar num ciclo vicioso o indecifrável da vida. Só se consegue apreender a essência do que quer que seja pela aquisição das suas virtudes, defeitos, formas, imagens, sentidos, significados; enfim, tomando o lugar do “objecto” pretendido.

Foi o que eu fiz, ao adquirir o espaço ausente do granito no qual me encontro. Tomei-lhe a forma, percepcionei-lhe os significados, reflecti-lhe virtudes e defeitos e adquiri uma imagem de uma morte do passado. Resumindo, senti a neutralidade de uma acção simbólica da vida; medi a intensidade, a duração, a altura e o timbre de um sentimento, ora nobre ora banal do ser humano de outrora...

O Sol continua ao meio-dia e uma linha imaginária deste até mim, sem desvios nem curvas, exuberantemente, expõe a sua verticalidade perfeita. Será o Imperador da Luz o culpado das chamas que devastam o nada?! Como pode o fogo arder sem combustível? Não é só do oxigénio que necessita! Ou será que este óxido genial tornou a sua existência inflamável!?

Mas eu respiro, essa é que é essa! Os meus pulmões já se adaptaram à nova forma gasosa de se respirar. Que ridículo!

Acho que não é assim tão ridículo. Dos meus pulmões, onde se exerce uma espécie de revolução, sai um ar espesso e sobe até aos céus. Cada narina envia doses de ar que se condensam ao chegar lá no alto...

Ui!, parece que vai haver uma batalha campal no céu, numa ordem paralela de nuvens!

Serei um mero espectador da vitória de um dos aglomerados...

Chocaram! As duas falanges de força aérea homogénea dos dois exércitos embateram em carga! Colisão terrível!!! A linha vertical que me iluminava deixou de ser imaginária e passou a ser real: um relâmpago tão silencioso como o ruído sincero da sua representação “trovadoresca”!

Claro, sou eu a vítima! Já não sucumbo grelhado, mas electrificado!...

Incrível, o raio deu-me forças e energias além de me matar!

Afinal, Sentímetro, não me enganaste! Fizeste-me ver o quão errado estava como Antropólogo dedicado à Morte. Não são sepulturas rupestres! São reservatórios de água antropomórficos!

Então e as tumbas das supostas crianças? E as do casal? Que significado? Resposta: a (pro)criação e quantidades racionadas proporcionais ao desenvolvimento da escassez de cada um.

O clima severo e árido da região levou o homem a metamorfosear a água em ser divino, o qual só seria compreendido com a mesma forma que a sua: a humana. A mitologia, não de que do pó se veio e a ele se retornará, mas que da água se escorre e dela se evaporará, é a premissa absoluta de uma crença local.

Dito isto e começou a chover. Como o meu corpo preencheu a rocha, a água não acumulou no devido depósito, mas eu absorvi-a e, nem grelhado nem electrificado, mas cozido!...

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