Sabem aquela frase estafada, que se ouve
de passagem - já a causar náusea - que de tantas vezes por tantos
repetida como verdade absoluta se descredibiliza e torna oca?
«Teve uma ideia, tão original e tão esquematizada em máxima sentenciosa, que se tornou um lugar-comum e perdeu a originalidade. Mesmo para quem a criou.»
Vergílio Ferreira
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Será até um dos muitos mitos
urbanos de tanto que se enfatiza a importância que se atribui à beleza
interior. Ahhh, fulana é linda por dentro e por fora, ou não interessa a
aparência de cicrano, mas sim o interior, aí sim se encontra o
verdadeiro encanto. A mim, confesso, dá-me uma instantânea vontade de
rir, quando aquele filme paralelo que tem acompanhado a minha vida,
aquele que - qual vida de brian - segue direitinho o meu raciocínio
normal a cada situação, mas em versão cómico-apalermada: Beleza
interior? Ah sim, deve ser uma beleza o cheirinho do estômago, e o
borbulhar acre dos sucos então devem ter cá um encanto... e os
intestinos? bom, nem me adianto no caminho fácil e previsível de pensar na piadola escatológica.
A beleza existe. Em todo o lado que
se olhe. Basta ver o ângulo certo de cada objecto, ser ou momento. Devia
ser obrigatório activar a tecla do sentido estético à nascença, mas aí,
já nem faria sentido nada do que estou a escrever.
Outro dia ouvia os geniais Filipe Homem Fonseca e Eduardo Madeira numa
entrevista de rádio, falavam da COMMEDIA GOURMET que anda pelo país fora
a arrastar o Eduardo Madeira de guitarra às costas, com um menu
esfuziante de Stand Up Comedy, servido numa cama de Música em redução de
trufas gargalhadas, em espuma verde de boa companhia... algo assim.
Brincava com o que nos servem em Gourmet, com nomes tão elaborados que
quando acabam de se pronunciar já não há nada do pouco que vinha no
prato, falava de apetecer uma almoçarada de boa comidinha portuguesa
quando o Filipe Homem Fonseca se sai com o título alternativo perfeito:
COMMEDIA BITOQUE e enquanto me ria pensava: olhó filme cómico-apalermado
ali a gritar!
O cliché do gourmet versus bitoque é idêntico ao síndrome da beleza exterior/interior, ou até - o do meu filme cómico - que poderia chamar naturalmente de Bota da Tropa/Bebé Beatle... ok, ok, eu explico.
Quando nasci, contam que vinha com uma
guedelha que teve de ser cortada (penso que terá mesmo sido com a
tesoura do umbigo), porque a minha proverbial franja era então uma
melena que me dava pelo queixo. Ora sendo o ano de '63, logo as
enfermeiras me deram a original alcunha de Bebé Beatle. Lembro da minha
avó contar que, olhando o berçário, outra avó lhe perguntou qual seria o
neto, a que graciosamente a minha avó respondeu tufando o peito, a
menina mais bonita, a que tem cabelo. Ora se nasci gira, e era gira na
escola ou no local onde a família passava férias, em abono da verdade
isso constituía um facto que vivia comigo, a que com toda a sinceridade
nunca liguei pevas. Cresci meio maria-rapaz muito mais preocupada no
prazer de andar de bicicleta, subir às árvores sempre na chinchada ou
bater nos rapazes para defender a minha irmã. Quando algum moço mais
afoito pensou em derriço para o meu lado, e soltou a frase: Ah és tão
gira, respondi-lhe secamente: E...?
Ok, hoje, cá do alto dos meus quase 50
anos, sei que se tivesse nascido feinha como uma bota da tropa, teria
certamente ligado e muito a esse simples facto. Muito provavelmente
ter-me-ia resguardado na grande personalidade e na imensa beleza
interior que certamente (definitivamente!) teria em minha defesa.
E agora pergunto: e porque é que uma
bota da tropa tem de ser feia?, e o que é que vem à lembrança? (lá está
ela...) aquela foto que há dias fiz pin numa rede social dessas que
todos usamos por ter achado uma ideia gira. É a forma como olhamos o que
nos envolve: Tudo, mas tudo tem o seu encanto. E olhando pelo cantinho
certo, pelo ângulo que mais ninguém se incomodou de vislumbrar,
descobrimos que nem uma bota da tropa consegue ser feia.
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