Em 1919, por motivo de doença, o poeta e romancista Francisco
Costa (1900-1988) passou uma temporada na Serra do Caramulo. O contexto foi o
seguinte, de acordo com a sua “Autobiografia
Literária”. Por alturas da gripe pneumónica, isto é, ao redor dos meses de
outubro / novembro de 1918, momento em que a epidemia grassou em força no
concelho de Sintra, Francisco Costa foi surpreendido pela doença. Tal
enfermidade – a tuberculose pulmonar (desconhece-se, porém, se esteve
diretamente relacionada com a pneumónica) – obrigou-o a uma “experiência inútil na serra escalvada do
Caramulo”; vivência possível de situar, tendo por base a sua
correspondência pessoal, entre os primeiros dias do mês de agosto de 1919 e os
meados de novembro do dito ano.
Como igualmente foca na “Autobiografia
Literária”, alguns dos seus sonetos – que viriam, aliás, a ser publicados
em Pó (1920) – são escritos nesse período de afastamento da vila de Sintra. À
luz de tudo o que foi referido, não surpreende que os sonetos em causa reflitam
estados de espírito algo contraditórios (embora a tónica seja a descrença) –
exemplo paradigmático do soneto “Nevrose
de agosto” (que transcrevo a seguir), mas também de “Na Serra”.
Dia húmido e triste.
Céu cinzento.
Nuvens. Luz alvacenta e
doentia.
Como as águas do mar,
meu pensamento
Reflete a cor do céu,
triste e sombria.
Penso… E tal como folha
em pé de vento,
A minha ideia é tonta,
tresvaria…
Ora faz de uma flor um
sofrimento,
Ora transforma um cardo
em alegria!
Sinto em mim estos
pérfidos, fogosos,
O frenesi que faz os
criminosos
- desejo indefinido que
remoinha.
Olho as cinzas das
nuvens, e descubro
que, sendo embora
agosto, hoje é outubro…
e esta alma, sendo
minha, não é minha!
Outros registos escritos feitos por Francisco Costa no
Caramulo deixam transparecer o esmorecimento ante a doença. Refiro-me, por exemplo,
a um soneto escrito no dia em que completou 19 anos (12/08/1919); trata-se de
uma mensagem de agradecimento endereçada aos hóspedes do Hotel Caramulo, dado o
acolhimento que prestaram à sua pessoa. Tal soneto, pela relevância da data,
foi impresso dois dias mais tarde em formato de postal (integra o espólio
pessoal do escritor) com o objetivo expresso de ser oferecido aos hóspedes do
citado hotel.
Deixo ao leitor a possibilidade de analisar mais um documento
do espólio pessoal de Francisco Costa, em ordem a ilustrar os estados de
espírito por que passou na sua estadia na Serra do Caramulo. Falo de uma carta
que endereçou ao seu amigo Amílcar de Barros Queirós (o qual, em 1918, de igual
modo por motivo de doença, havia também passado pelo Caramulo). Dessa missiva,
algo extensa e redigida em jeito de diário, transcrevo apenas o trecho que
Francisco Costa desejou que fosse publicado (conforme nos revelou, em tempos, a
filha do escritor, D. Isabel Costa, entretanto já falecida).
Carta a Amílcar de Barros Queirós, 16/08/1919
Ó maravilha das
maravilhas! Vi hoje o mar de névoa, celerado! E que mar de névoa, que
fantástico espetáculo! Dali debaixo, da última curva da estrada, as ondas
brancas vão-se desenrolando até bater no morro da Serra da Estrela. A um lado
um pinheiral meio submerso fazia pensar nos estragos magníficos dum novo
dilúvio. Aqui e acolá montes imóveis de nata lembravam jatos de espuma de
alguma vaga purificada ao rebentar. E, sobre toda esta brancura, a luz já triunfal
do sol punha cintilações estonteantes.
Depois o sol veio
subindo mais e mais; e o mar que tinha a cor sombria do chumbo tornou a
brancura alucinante do leite.
Oh! Que pena tenho de
não ter visto nascer o sol. E não sabia – e não me acordaram. Só às 7 ½ houve
uma alma caridosa que me veio bater à porta. Mas na próxima vez – fixe!
Sabemos que a estadia
na Serra do Caramulo não trouxe os efeitos pretendidos. Na verdade, foi na vila
de Sintra que, no decurso de “cinco
longos anos”, o poeta se tratou a sério. É bom notar que esse período de
convalescença – salutaris morbus –
foi extremamente profícuo para Francisco Costa. Com efeito, permitiu-lhe a
leitura de inúmeras obras, a aprendizagem de línguas, a escrita de
poemas….
Por sorte, ou talvez por outros desígnios da vida, Francisco
Costa venceu a adversidade da doença. Digo isto a pensar no legado que nos
deixou, edificado ao longo de oito décadas de vida. Um legado corporizado nos
seus livros e que ficou também expresso nas suas intervenções e na sua ação
enquanto homem de cultura (recorde-se, apenas a título de exemplo, a fundação
da Biblioteca Municipal de Sintra).
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