Vou
contar-vos um conto que me foi contado por um contador de contos sentado a um
canto da sala, encostado a um contador que a ornamentava.
Trata-se
de uma estória sem história narrada por um historiador que já recebera a
narração vinda de seu avô, homem idoso mas com história e muitas outras
estórias por contar.
Principia
como todos os contos com a tradicional entrada: era uma vez …
Era
uma vez um país perdido na bruma dos dias e nas longas noites longas. Um país
que de bruma em bruma já atravessara séculos, que vira surgirem algumas réstias
de luz e de esperança, mas que os secos ventos, rápido escureceram tudo de novo
transportando as obtusas nuvens.
As
trevas regressaram e os homens embrutecidos e espoliados da razão, sentiam-se
atraídos para o abismo, incapazes de tornear a questão, porque fora de causa
enfrentá-la dada a desigualdade de armas empregues no confronto. Confronto onde
o vencedor estava automaticamente encontrado à revelia de toda e qualquer razão
ou opinião esgrimida.
Trata-se
como já se disse de uma estória sem história em tudo semelhante a muitas outras
que acontecem um pouco por todo o planeta.
São
contos sem história que serão anos depois aproveitados pelos historiadores para
reinventarem as suas estórias em paralelo com outras estórias, mas a verdadeira
história, essa ficará sempre por escrever. E ficará sempre por escrever por
falta de instrumentos. Não por ausência de vontade ou querer mas porque os
homens já perderam os dentes e quando lhes dão algo de comer são apenas nozes
ou pão de oito dias.
Igualmente
os homens desse país perdido no tempo já perderam as unhas de tanto esgravatar
e de se arrastarem na tentativa de saírem para fora, para a luz, de abandonarem
o buraco escuro sujo e fétido onde diariamente se sentiam nadar e no qual com
dificuldade conseguiam soçobrar.
Não
obstante a obscura situação vivida pelos homens desse próximo país feito longe,
a esperança em melhores dias continuava a reinar. Esboçavam-se sorrisos. Alguns
poucos homens lutavam na sombra possível para alterarem o estado de coisas.
Muitos sacrifícios passados por esses intrépidos lutadores, muitos que pelos
tortuosos caminhos ficaram na tentativa de semearem um cravo vermelho e eis que
numa enevoada madrugada que acordou numa auspiciosa manhã, o cravo finalmente
irrompeu do seu leito adormecido para felicidade dos homens amordaçados.
A
euforia dos primeiros tempos, o desejo de gritar alto as liberdades
conquistadas levou os homens desse país a acomodarem-se, a adormecerem à sombra
dessas aparentes e frágeis regalias conquistadas. Esqueceram-se de alimentar o
cravo, de lhe dar água e sombra. O pobre e triste cravo agora abandonado foi
murchando aos poucos. Os princípios foram abandonados. Os homens maus à sombra
da democracia insistiam em esquecer o cravo, em escondê-lo por detrás de placas
e tapumes. Começaram por fazer as leis à sua medida. Cavaram as desigualdades,
passaram a servir-se e a oferecer numa bandeja para receberem mais tarde pela
porta das traseiras. Os outros homens, os que haviam conseguido deixar crescer
as unhas perderam o sorriso e foram-nos consumindo, esgravatando de novo em
busca do equilíbrio nos terrenos lodosos e escorregadios da tão propalada
democracia. Queriam democracia para fazerem o que bem entendiam, agora escudados
nas novas leis por eles criadas. Democracia porque os homens desse país tinham
direito ao voto de 4 em 4 anos. Mas perderam o direito ao trabalho e ao
salário, reduziram-lhe e roubaram-lhe a saúde. Reinventaram a pseudo escolarização.
Reduziram a qualidade do ensino. Amarfanharam os quadros médios desse país
aumentando as diferenças sociais, cavando um fosso intransponível, criando
desigualdades, mentindo no interesse pessoal e na manutenção do status quo.
Os
homens começaram a ficar baralhados e confusos, a por em causa a nova
realidade. A questionar e a organizarem-se. Começaram a lutar em conjunto pelos
seus interesses colectivos. Aprenderam que dessa forma, com o povo na rua era
possível construir coisas e mostrar desagrado pelas políticas praticadas pelos
políticos, politicamente anti sociais e à margem dos desejos e anseios das
populações. Havia quem chamasse a estes comportamentos, de “poder popular”. Não
interessam as palavras nem os adjectivos, mas sim as praticas concretas
praticadas por quem as praticava de forma consciente e livre, organizada e
ordeira.
Quem
sabe se não seriam estas as pequenas gotas necessárias e suficientes para que o
cravo adquirisse de novo vicissitude e o seu brilho. Lutaram para que muitos
destes levantamentos populares e de discordância contribuíssem para a queda de
muros e de tapumes com os quais os homens haviam tapado e procuravam esconder o
cravo rubro que desabrochara numa madrugada naquele país lá longe perto.
Continuam lutando no dia a dia certos de que a vitória será difícil mas será
deles, e perdurará para os seus sucessores.
Nesse
país continuam procurando subir os degraus da vida, conscientes de que a escada
é íngreme, cheia de buracos e escolhos de toda a espécie, que impedem e limitam
a passagem e a ascensão. Mas a confiança não esmorece e o cravo lá está no
horizonte longínquo a guiar os homens na sua atitude de solidariedade e de
esperança em futuro melhor.
Este
conto foi-me contado à beira da lareira numa noite fria e chuvosa de inverno
pelo meu avô, homem de muitas lutas e vivências com o objectivo de me
reconfortar e chamar à luta neste momento de desespero, em que sentados os dois
ao calor da chama e saboreando um tinto caseiro, íamos desfiando um rosário de
injustiças e desigualdades. O nosso país soçobrava. Ameaçava ruir e estava na
ruína. Elevado défice externo. Desemprego atingindo proporções impensáveis.
Fome e miséria grassando. Direitos e regalias cortadas e diminuídas em
contraste com os elevados índices de desnorte e de corrupção praticadas por
quem tem responsabilidades e obrigações para com todo um povo e futuras
gerações.
A
estória contada pelo meu avô fez-me lembrar a nossa história pessoal e de país
adormecido e embrutecido pelo comportamento despudorado dos senhores políticos
e por parte da elite no poder. O calor do ambiente e as palavras de narração do
meu avô eram reconfortantes e cheias de esperança. Erguemos os copos meio
rubros, fizemos um brinde e bebemos esvaziando os copos num misto de raiva e de
impotência, mas confiantes de que também nós seriamos capazes de semear um
cravo e cuidar dele, aprendendo com os erros do passado.
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