terça-feira, 3 de setembro de 2013

Conto ou Realidade, por Eurico Leote

EURICO LEOTE

Vou contar-vos um conto que me foi contado por um contador de contos sentado a um canto da sala, encostado a um contador que a ornamentava.

Trata-se de uma estória sem história narrada por um historiador que já recebera a narração vinda de seu avô, homem idoso mas com história e muitas outras estórias por contar.

Principia como todos os contos com a tradicional entrada: era uma vez …

Era uma vez um país perdido na bruma dos dias e nas longas noites longas. Um país que de bruma em bruma já atravessara séculos, que vira surgirem algumas réstias de luz e de esperança, mas que os secos ventos, rápido escureceram tudo de novo transportando as obtusas nuvens.

As trevas regressaram e os homens embrutecidos e espoliados da razão, sentiam-se atraídos para o abismo, incapazes de tornear a questão, porque fora de causa enfrentá-la dada a desigualdade de armas empregues no confronto. Confronto onde o vencedor estava automaticamente encontrado à revelia de toda e qualquer razão ou opinião esgrimida.

Trata-se como já se disse de uma estória sem história em tudo semelhante a muitas outras que acontecem um pouco por todo o planeta.

São contos sem história que serão anos depois aproveitados pelos historiadores para reinventarem as suas estórias em paralelo com outras estórias, mas a verdadeira história, essa ficará sempre por escrever. E ficará sempre por escrever por falta de instrumentos. Não por ausência de vontade ou querer mas porque os homens já perderam os dentes e quando lhes dão algo de comer são apenas nozes ou pão de oito dias.

Igualmente os homens desse país perdido no tempo já perderam as unhas de tanto esgravatar e de se arrastarem na tentativa de saírem para fora, para a luz, de abandonarem o buraco escuro sujo e fétido onde diariamente se sentiam nadar e no qual com dificuldade conseguiam soçobrar.

Não obstante a obscura situação vivida pelos homens desse próximo país feito longe, a esperança em melhores dias continuava a reinar. Esboçavam-se sorrisos. Alguns poucos homens lutavam na sombra possível para alterarem o estado de coisas. Muitos sacrifícios passados por esses intrépidos lutadores, muitos que pelos tortuosos caminhos ficaram na tentativa de semearem um cravo vermelho e eis que numa enevoada madrugada que acordou numa auspiciosa manhã, o cravo finalmente irrompeu do seu leito adormecido para felicidade dos homens amordaçados.

A euforia dos primeiros tempos, o desejo de gritar alto as liberdades conquistadas levou os homens desse país a acomodarem-se, a adormecerem à sombra dessas aparentes e frágeis regalias conquistadas. Esqueceram-se de alimentar o cravo, de lhe dar água e sombra. O pobre e triste cravo agora abandonado foi murchando aos poucos. Os princípios foram abandonados. Os homens maus à sombra da democracia insistiam em esquecer o cravo, em escondê-lo por detrás de placas e tapumes. Começaram por fazer as leis à sua medida. Cavaram as desigualdades, passaram a servir-se e a oferecer numa bandeja para receberem mais tarde pela porta das traseiras. Os outros homens, os que haviam conseguido deixar crescer as unhas perderam o sorriso e foram-nos consumindo, esgravatando de novo em busca do equilíbrio nos terrenos lodosos e escorregadios da tão propalada democracia. Queriam democracia para fazerem o que bem entendiam, agora escudados nas novas leis por eles criadas. Democracia porque os homens desse país tinham direito ao voto de 4 em 4 anos. Mas perderam o direito ao trabalho e ao salário, reduziram-lhe e roubaram-lhe a saúde. Reinventaram a pseudo escolarização. Reduziram a qualidade do ensino. Amarfanharam os quadros médios desse país aumentando as diferenças sociais, cavando um fosso intransponível, criando desigualdades, mentindo no interesse pessoal e na manutenção do status quo.

Os homens começaram a ficar baralhados e confusos, a por em causa a nova realidade. A questionar e a organizarem-se. Começaram a lutar em conjunto pelos seus interesses colectivos. Aprenderam que dessa forma, com o povo na rua era possível construir coisas e mostrar desagrado pelas políticas praticadas pelos políticos, politicamente anti sociais e à margem dos desejos e anseios das populações. Havia quem chamasse a estes comportamentos, de “poder popular”. Não interessam as palavras nem os adjectivos, mas sim as praticas concretas praticadas por quem as praticava de forma consciente e livre, organizada e ordeira.

Quem sabe se não seriam estas as pequenas gotas necessárias e suficientes para que o cravo adquirisse de novo vicissitude e o seu brilho. Lutaram para que muitos destes levantamentos populares e de discordância contribuíssem para a queda de muros e de tapumes com os quais os homens haviam tapado e procuravam esconder o cravo rubro que desabrochara numa madrugada naquele país lá longe perto. Continuam lutando no dia a dia certos de que a vitória será difícil mas será deles, e perdurará para os seus sucessores.

Nesse país continuam procurando subir os degraus da vida, conscientes de que a escada é íngreme, cheia de buracos e escolhos de toda a espécie, que impedem e limitam a passagem e a ascensão. Mas a confiança não esmorece e o cravo lá está no horizonte longínquo a guiar os homens na sua atitude de solidariedade e de esperança em futuro melhor.

Este conto foi-me contado à beira da lareira numa noite fria e chuvosa de inverno pelo meu avô, homem de muitas lutas e vivências com o objectivo de me reconfortar e chamar à luta neste momento de desespero, em que sentados os dois ao calor da chama e saboreando um tinto caseiro, íamos desfiando um rosário de injustiças e desigualdades. O nosso país soçobrava. Ameaçava ruir e estava na ruína. Elevado défice externo. Desemprego atingindo proporções impensáveis. Fome e miséria grassando. Direitos e regalias cortadas e diminuídas em contraste com os elevados índices de desnorte e de corrupção praticadas por quem tem responsabilidades e obrigações para com todo um povo e futuras gerações.

A estória contada pelo meu avô fez-me lembrar a nossa história pessoal e de país adormecido e embrutecido pelo comportamento despudorado dos senhores políticos e por parte da elite no poder. O calor do ambiente e as palavras de narração do meu avô eram reconfortantes e cheias de esperança. Erguemos os copos meio rubros, fizemos um brinde e bebemos esvaziando os copos num misto de raiva e de impotência, mas confiantes de que também nós seriamos capazes de semear um cravo e cuidar dele, aprendendo com os erros do passado.

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