Serafim, o funcionário da junta, foi o
primeiro a chegar com os boletins de voto, na mesa da secção, na escola
primária, eram os do costume, que a sanha pelos setenta euros e dia seguinte livre dera direito a disputa. A Cesaltina já estivera na mesa
muitas vezes, era agora a vez do Castro, barbeiro e escrutinador. Como
sempre, a escola primária servia de secção de voto, mas só dois partidos
mandaram observadores, o Tiago, um estudante de Arquitectura, e o Tavares, da loja
de ferragens.
A freguesia era estável. Os mais
idosos votaram pela manhã, alguns com o livro de missa ainda na mão, o Falcato,
do partido do governo votou logo às oito e dez e oportuno, ficou-se a
cumprimentar os vizinhos, pelo sim pelo não, a sugerir que pensassem bem no
voto, que os outros não eram de fiar. Sabedor, o doutor Crespo, do partido
adversário, postou-se vinte metros antes do Falcato, na primeira linha de
apertos de mão, um e outro respeitando porém a distância dos quinhentos
metros.
Pelas nove e meia só uma vintena
votara já. A D. Irene esqueceu-se do cartão mas a mesa reconheceu a
octogenária, decana da aldeia. O rapaz do Bloco torceu o nariz, voto na direita,
por certo, melhor seria ter ficado em casa. Também o Tomé da funerária votou
cedo, trocista, comentando que nem nesse dia deixava de ir às urnas, e avisando
para se escolher bem, para evitar um grande enterro. Na mesa, os afectos ao
governo sorriram, nervosos mas descontraídos. As manas Rodrigues, Clotilde e
Zezinha uma do PSD, outra do PS, chegaram sem pressa de votar, a
que ganhasse teria o lanche pago pela outra. Com scones e chá
aromático, insistiu a Clotilde, segura da vitória do seu líder.
Pelas dez horas, chegou o velho
Avelino, já entrado nos setenta, a mulher morrera um ano antes e entretinha o
tempo no café do Brás. Ainda ressacado da véspera, ao entrar na secção de voto,
tropeçou numa vala, estatelou-se desgovernado e ficou com as calças
ensopadas de lama. Prestáveis, o Falcato e o dr. Crespo, adversários
eleitorais, logo se uniram num bloco central de ajuda ao azarado vizinho.
Avelino, que pensara votar cedo para se despachar e cair na cama a
curá-la, levantando-se a custo, começou a invectivar a junta e os políticos pela
falta de obras como deve de ser, e logo um comício improvisado nasceu à porta
da secção de voto, cinco eleitores em roda ele, antes de se decidirem a
entrar:
-Isto é uma vergonha! Andamos a pagar
para estes tipos comerem todos do mesmo tacho, obras é o que se vê!. O povo é
que é culpado disto tudo, a carneirada anda toda a dormir, é o que é! -o fato enlameado e o ar zangado
faziam do Avelino um inesperado descamisado, a Ermelinda e o Crispim, também
com obras à porta sem andar, concordaram, juntando-se ao protesto:
-O Avelino tem toda a razão!
Ainda ontem apanhei o presidente da junta mas ele nada, que já mandou um
ofício, que já mandou um ofício, mas à porta dele já mandou pintar uma zebra,
essa é que é essa! Temos de fazer valer os nossos direitos, senão fazem de nós
gato-sapato!
Às tantas eram já nove, os delegados
dos partidos, inicialmente passivos, aproveitaram e cavalgaram a revolta,
votando neles teriam a hipótese de escolher a lista certa, prometiam. No interior
já não havia fila, todos na rua à volta dos lesados por políticos
que se enchiam e não faziam obras. O Avelino, ganhando força e já desperto
da ressaca, alvitrou um boicote às eleições, e subindo para cima dum
banco dirigiu-se à multidão (a partir de três já é um comício) apelando à
tomada da escola, pondo-se à cabeça do grupo. Alertado pelo barulho, juntou-se
o pessoal que bebia aperitivos no café do Brás. Entusiasmados com o protesto,
dirigiram-se à mesa, urgia fazer justiça:
-Ó Castro, toca a arrumar a tralha e
a encerrar a mesa dos votos. Aqui o povo não vota mais enquanto a junta não
fizer obras, isto já passou das marcas! -e com a ajuda de mais dois, atirou a urna ao chão e
fez voar os votos como confetti. As manas aplaudiram, divertidas,
perdiam a aposta do lanche mas ganhavam a sua Maria da Fonte. A Clotilde, que
detestava a Cesaltina, aproveitou e postou-se frente a ela, o poder era deles
agora, chefes da fronda da aldeia. Ruborizada, a Zezinha ordenou ao Castro
barbeiro para não levantar cabelo, e, subindo a uma cadeira, dirigiu-se aos
insurrectos e ao pessoal dos aperitivos:
-Os políticos não passam a vida a
falar em voto útil? O voto só é útil para quem o recebe, assim sendo daqui não
vai nenhum, que o povo já não vai em cantigas! Queremos a rua arranjada e é
para ontem!
O Falcato e o dr. Crespo,
representantes dos partidos do centrão, entreolharam-se, urgia uma aliança para
repor a ordem, que votassem, que eles depois usariam de influências para uma
rápida conclusão das obras. O Avelino estava de pedra e cal:
-Não se vota, nem vota mais
ninguém! -e pegando num isqueiro, escrutinou em cinzas os primeiros votos nulos do país, a GNR de
Sintra vinha a caminho mas era já tarde, o Castro, invocando tumulto, fechara já
a secção de voto. Vistas bem as coisas, repetindo a votação na semana seguinte
até seriam mais setenta euros, deixou correr.
Duas horas depois, armado com o
ponteiro da escola, qual metralhadora, e ladeado pelas manas Silva, do comité
de luta improvisado, Avelino dava entrevistas à televisão, que o povo era
de antes quebrar que torcer, sem arranjo das ruas, não se votava. Ah, e
queria a limpeza a seco do fato. Sinuosos, o Falcato e o dr. Crespo mostraram
compreensão, e prometeram tudo pagar. Votando, e mais, votando neles, logo se
resolveria a questão da vala.
Findo o dia, o país fizera a sua
escolha e apenas quatro mesas haviam boicotado, a do Castro, perto de Sintra,
era uma delas. Vítima do desmazelo da junta e já trôpego com o sétimo bagaço, o
Avelino celebrou no café do Brás a conquista da primeira maioria
absoluta.
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