terça-feira, 24 de setembro de 2013

Uma eremítica estadia no Convento de Santa Ana do Carmo no séc XIX

ANDRÉ MANIQUE
O excerto do texto do poeta Bulhão Pato (1828-1912) que aqui deixo, e que vai narrando a eremítica estadia no Convento de Santa Ana do Carmo de Colares, em 1849, de três personagens ilustres da Cultura portuguesa, Alexandre Herculano, o próprio Bulhão Pato e o Marquês de Sabugosa, António de Mello César de Menezes, procura servir de paralelismo entre Cultura e Património, numa tentativa de entender a importância deste último na valorização da primeira. 

Em Agosto de 2012 deu-se o centenário da morte do poeta, e muito embora o seu texto se centre em torno da figura de Alexandre Herculano e do seu poema da “Harpa do Crente”, A Cruz Mutilada, é o próprio Bulhão Pato quem aqui se pretende evocar.Bulhão Pato enaltece assim ao longo do texto Alexandre Herculano, figura com quem priva e tem particular convivência durante esse período conturbado da sociedade portuguesa, da segunda metade do séc. XIX, bem como com Almeida Garrett, Andrade Corvo, Latino Coelho, entre outros.A convivência com personalidades literárias e políticas da época fê-lo adepto das ideias liberais e mais radicais, abraçando assim a causa Setembrista. Embora tivesse apoiado a revolta da Maria da Fonte e a Emboscada, em 1846, nunca teve um papel político-partidário interventivo, no entanto, deixou obras como memorialista muito interessantes para se perceber a cultura e mentalidade vigentes, tendo como cenários a cidade de Lisboa e seus arredores. Nessa altura, e após a extinção das Ordens Religiosas na sequência do decreto de 30 de Maio de 1834 pelo então Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Joaquim António de Aguiar, a propriedade do Convento de Santa Ana do Carmo de Colares encontrava-se já posse de D. Francisco de Almeida Portugal, o 2º Conde de Lavradio, distinto diplomata, político e alto representante do Liberalismo na Europa. Será a convite deste que os três ilustres personagens resolvem então partir a pé de Lisboa em direcção a Colares para visitarem o amigo e a sua propriedade, onde ficam instalados uns dias. É um excerto desse relato que aqui fica:

“Em 1849, Alexandre Herculano tinha trinta e nove anos e umas pernas de aço. Havia-as exercitado pelas serras dentadas, escalões e fraguedos, como valente soldado de infantaria no heróico regimento de Voluntários da Rainha.
(…) O marquês de Sabugosa e eu tínhamos nossas fumaças de bons andadores. Ufanavamo-nos de, havendo saído de uma reunião em casa do marquês de Penalva, à Patriarcal, de chibatinha na mão – das que então se chamavam Polkas – irmos até ao palácio de São Lourenço, a Santo Amaro, e, resolvendo-nos subitamente, sem pregar olho, batermos connosco em Cintra!
Contámos, com certo orgulho, a aventura a Alexandre Herculano, quando na volta, que foi também a pé no dia seguinte, lhe caímos em casa sobre a ceia, impando de glória e mortos de fome.
(…) Combinou-se uma ida a pé a Cintra, para ficarmos uma semana na serra, no convento do Carmo, que pertencia ao conde de Lavradio, cunhado do marquês de Sabugosa.
Era no fim de Setembro. Levantámo-nos ainda muito de noite. De sacco a tiracollo, com leve bagagem, e sapato de salto raso – sapato de campino, que é o melhor -, cada um pegou no seu cajado e partimos serra de Monsanto acima, cortando para Queluz, onde devíamos almoçar.
Dos altos da serra via-se já o sol a romper, atirando horizontalmente as frechas rubras sobre o escudo brunido e esverdeado do Tejo.
(…) Até Queluz o caminho era bravo, – tudo serra. Não havia estrada. Herculano seguia a passo cadenciado e militar; o corpo curvado e pendido um pouco sobre o lado direito. Pelo caminho ia-nos contando os passos do seu tempo de soldado; os dias mais felizes da sua vida, e também os da emigração, com terem tido muitas horas amargas.
(…) Terminado o almoço em Queluz, seguimos, estrada fora, até Cintra. Em Cintra comemos alguma fruta e partimos, serra acima, até ao convento do Carmo.

O mestre ia ovante! Nós não queríamos dar parte de fracos, mas suspirávamos intimamente pelo termo da viagem!

Pouco depois da chegada ao convento, fumegava sobre a toalha de linho, muito branca, uma grande terrina de canja. Devorámos a ceia, quase sem dar palavra e em seguida caímos na cama com o profundo sono do justo. Herculano levantou-se às sete. Cerca das onze, veio acordar-nos, e repetia-nos a seguinte cantilena:

Quatro horas dorme o santo.
Cinco o que não é tanto.
Seis o estudante.
Sete o viandante.
Oito o porco.
E nove o morto!
Nós tínhamos dormido doze! “

       ***



A quem estiver na vazante da vida, como eu, e tenha visto alguma coisa, aconselho que faça os seus apontamentos. 
Neste relembrar do que foi, há um consolo que não se define!Vivemos retrospectivamente. Estas memórias, que não terão valor para os outros, são preciosas para mim! Respiro horas inteiras no horizonte da mocidade, e a consciência com que escrevo desafoga-me o espírito, e dá-me uma tranquilidade salutar. 
São como a confissão para o verdadeiro religioso! Confissão geral; e, di-lo-ei – embora seja censurado – posso fazê-la alto, sem que as faces se me acendam nem de leve. Pecadilhos, fraquezas, arrebatamentos próprios do temperamento, não me faltam decerto; mas criminoso não sou, nem fui.Todo o homem que disser com verdade: “ Eu nunca roubei nem dinheiro, nem honra – há mais ladrões desta espécie de moeda, e são os piores! – eu nunca caluniei ninguém, esse homem morre em paz!


       ***

A pouca distância do convento do Carmo, naquela agreste e encantadora posição da nossa Cintra, a que o próprio Lord Byron, inimigo figadal dos portuguezes, chama “a mais bela da Europa”, estava a cruz que impressionou Herculano.

Tinha um braço partido, e a hera, a mãe solícita das ruínas, deitara-lhe em volta os ramos verdejantes e cariciosos. 
A poesia foi começada no convento do Carmo.

Abre com estes magníficos versos:

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando, à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te, quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te, erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério!
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó!

Alexandre Herculano, censurado de ímpio e herege espécie de papão com que em certa sociedade se chegou a meter medo às crianças e até às mulheres já feitas –, era uma alma profundamente religiosa. É correr os seus livros. 
Há um sabor, um perfume do misticismo santo de Jesus, em centos de versos e em relanços da sua prosa escultural. 
Nesta composição da ‘ Cruz Mutilada ’, escrita em dias prósperos, sob o céu do nosso Outono, na convivência de dois amigos íntimos, está o coração grande e virtuoso de Alexandre Herculano. Inspiravam-no a natureza e Deus!
Aos que o acusavam de blasfemo respondia com estes versos:

……………As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal, e ao ímpio inútil!


O poeta da ‘ Harpa do Crente ’ não compreendia a natureza sem lhe aliar outro ideal.

(…) Correram-nos oito dias naquele deserto, ora descendo à fertilíssima várzea de Colares, ora subindo às assomadas crespas da serra ou indo ver as ondas, que batiam, refervendo, nos recôncavos do precipício da Pedra de Alvidrar; dias que ficaram para sempre impressos no espírito de Alexandre Herculano e no nosso!

Há dois annos – havia já quatro que vira agonizar o autor da História da Inquisição – passei pela serra… 
Era um dia belíssimo e temperado de Setembro; mas, olhando para o convento do Carmo, senti um frio tão intenso e mordente, que parecia que o nordeste invernal me trespassava até ao coração!

O mocidade, o sol és tu!


Setembro, 29, 1883. “ 1








[1] Pato, Bulhão, A Cruz Mutilada, Memórias – Scenas de Infancia e homens de letras, Tomo 1, Lisboa, 1894.

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