segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Um Grito

EURICO LEOTE


No dobrar de uma esquina, no alcançar de um céu azul, no mergulhar nas tuas lágrimas, forjo o meu caminho e construo o meu ser. Desconstruo as incertezas, derrubo as contradições, navego no teu silêncio e obtenho uma satisfação interior, plena de sentido, aberta aos sentidos. Divago no tempo, corro sobre as águas passadas, regresso às origens, escuto os sonhos, dou asas ao pensamento e refugio-me nas sombras. Desço aos confins, solto um grito de esperança, abafo os soluços mornos aquecidos nos teus seios e lanço-me no espaço das ilusões, do tudo e do nada, do desejo e da esperança, no incerto tido por certo. Aqui acordo, olho mas não vejo, sombras toldam o meu pensamento, nuvens perpassam nos meus olhos, sinto o bafo da besta, corro à deriva, lanço-me na confusão, reacendo as chamas, queimo as esperanças e exausto adormeço de novo olhando para o infinito das inverdades. É tão bom existir mas não estar, é tão bom fechar os ouvidos às promessas incumpridas, ignorar os papagaios bem falantes engalanados nas suas penas multicolores, naquelas fachadas fechadas aos gritos de justiça e de luz, de igualdade e de fraternidade. À mundo cão onde me debato digo e contradigo, faço e nego que faço, onde arroto ar que se ergue perdendo-se nos céus do tempo gasto e velho, onde multidões se arrastam errantes alheias ao piar alegre de uma ave, ao som vibrante e cadenciado das ondas enrolando na areia, ao vento cantando nos canaviais, ao bom dia de quem passa, mais um ser errante mas ainda com esperança, que caminha com passos certos para um futuro incerto. Certezas leva-as o vento num rápido golpe da sua asa, no seu bico adunco desafiando as fragas e arribas, soltando gritos de desafio aos que restam, aos que ainda teimam, aos que ainda se arrastam tentando provar e mostrar que são gente, de carne e osso, com membros e cérebro, de coração negro e obscuro, obscurecido pelas aves de rapina que tudo pilham, de forma pensada e calculada, que ignoram apelos e lágrimas já secas de tanto chorar, braços tombados de tão erguidos que por gerações marcharam indicando os caminhos da luta e da revolta, rumo à luz e à paz, à partilha e à construção. Fomos mental e psicologicamente desconstruídos. Sentimo-nos desfeitos e feitos pó. Sopramos, é tudo o que nos resta, pois já perdemos a voz.

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