domingo, 15 de dezembro de 2013

Uma descrição de Sintra e suas freguesias em 1866

CARLOS MANIQUE DA SILVA


O século XIX, em particular a segunda metade, é a época de formação dos estudos locais. Augusto Santos Silva, que ao tema dedicou especial atenção (cf. Palavras para um País, 1997), estabeleceu uma categorização para as “monografias” produzidas antes das duas últimas décadas de Oitocentos, a saber: a) pesquisas de natureza corográfica, topográfica e estatísticas elaboradas por funcionários e dirigentes políticos, ou por quadros técnicos e científicos; b) textos de natureza diversa que, embora não considerados estudos, revelam factos e atributos de determinados espaços locais e regionais. Nesta última categoria, os trabalhos apresentam quase sempre um caráter não-erudito e literário, que tende a privilegiar o contato fácil com o leitor comum. Acima de tudo, importa registar o pitoresco, o que merece ser visto, mais do que a descrição “precisa” do passado. No fundo, trata-se de um convite ao desfrutar das paisagens, à preservação do legado patrimonial… muito eivado de um sentimento nostálgico e romântico – a busca de um tempo perdido.
O interesse pelos estudos locais tem particular relevância no caso sintrense. Na verdade, ao longo do século XIX, várias foram as tentativas de retratar, numa perspetiva histórica, a ambiência patrimonial de Sintra, sobretudo depois da emblemática obra do Visconde de Juromenha, Cintra Pinturesca (1838). Um desses casos, ao que julgo saber inédito, foi protagonizado por S. Borchado, autor, em 1866, de uma série de artigos publicados no periódico Gazeta do Campo, folha da classe dos pobres, conforme se intitula, impressa em Mafra. Na referida série – sete artigos dados à estampa entre 21 de janeiro e 1 de abril de 1866 – Borchado procura descrever todas as freguesias de Sintra, de acordo com a seguinte estrutura sequencial: S. Martinho, Santa Maria e S. Pedro de Penaferrim (quatro artigos); Colares (um artigo); Belas (um artigo); freguesias rurais (um artigo). De modo evidente, a vila de Sintra recebe a primazia, tanto mais que o “cronista”, no que às freguesias rurais concerne, indica não querer cansar os leitores, uma vez que não dispõe de “dados para minuciosa descrição”.

Em oposição, as três freguesias da vila de Sintra são descritas com algum pormenor, indiciando, tudo leva a crer, visita in loco. De resto, é de admitir que o autor tenha alguma ligação afetiva com as localidades em causa (1). Por exemplo, em relação a S. Martinho, o articulista revela inúmeros elementos da toponímia, menciona as Quintas da Regaleira, dos Pisões e da Penha Verde, o Palácio de Monserrate, a Fonte da Sabuga… Denota, inclusive, conhecimento da ancestralidade de algumas instituições, conforme sucede com a Misericórdia e a igreja de S. Miguel: Antes da fundação desta santa casa, que foi no governo da Rainha D. Catarina, em cujo tempo se lhe anexaram os hospitais do Santo Espírito e dos Gafos, já nesta vila existia a confraria de Santa Catarina, instituída na Igreja de S. Miguel no ano de 1304 pelo beneficiado João Miguéis: a igreja e todo o edifício não oferecem coisa alguma digna de notar-se, e a enfermaria é na verdade acanhada. (Gazeta do Campo, 21 de janeiro de 1866). Por outro lado, são muito curiosos os apontamentos a respeito da arquitetura civil e religiosa. Nesse capítulo, Borchado considera a sumptuosidade de Seteais, elogia o templo gótico de Santa Maria e o Palácio de Queluz, menciona o Túmulo dos Dois Irmãos e a Ermida de Santa Eufémia… Desvaloriza, porém, a igreja de S. Pedro de Penaferrim e, mesmo, a paroquial de Colares, que denomina de “arquitetura antiga e pobre”.

A sua visão histórica dos monumentos parece não se relacionar apenas com a época em que estes foram erigidos e, consequentemente, com a eventual preferência por um determinado período da história da arquitetura (gótico, barroco…). De facto, o autor reclama uma certa ideia de “unidade de estilo”, ou seja, de fidelidade à conceção original (patente nos comentários efetuados a propósito das igrejas de Santa Maria e de S. Pedro de Penaferrim). Demonstra, ainda, bem ao jeito do romantismo, um gosto pelos ambientes campestres e bucólicos, valorizando as “boas” e “belas” quintas de Meleças e de Colares, bem como o “pitoresco” sítio das Mercês, com a sua ermida.

Com toda a distância crítica que a sua análise obriga, o testemunho de S. Borchado constitui uma importante achega para o conhecimento da história remota de Sintra. E, em meados de Oitocentos, é bem o exemplo da progressiva afirmação da história local como um género próprio ao alcance de estudiosos não-eruditos.

1.Creio, aliás, tratar-se de António Joaquim de Sousa Borchado, que no início da década de 1850 era sócio da Assembleia Filarmónica de Sintra (cf. José Alfredo da Costa Azevedo, Velharias de Sintra, 1980, vol. I).

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