O século XIX, em particular a segunda metade, é a época de
formação dos estudos locais. Augusto Santos Silva, que ao tema dedicou especial
atenção (cf. Palavras para um País, 1997),
estabeleceu uma categorização para as “monografias” produzidas antes das duas
últimas décadas de Oitocentos, a saber: a) pesquisas de natureza corográfica,
topográfica e estatísticas elaboradas por funcionários e dirigentes políticos,
ou por quadros técnicos e científicos; b) textos de natureza diversa que,
embora não considerados estudos, revelam factos e atributos de determinados
espaços locais e regionais. Nesta última categoria, os trabalhos apresentam quase
sempre um caráter não-erudito e literário, que tende a privilegiar o contato
fácil com o leitor comum. Acima de tudo, importa registar o pitoresco, o que
merece ser visto, mais do que a descrição “precisa” do passado. No fundo,
trata-se de um convite ao desfrutar das paisagens, à preservação do legado
patrimonial… muito eivado de um sentimento nostálgico e romântico – a busca de
um tempo perdido.
O interesse pelos estudos locais tem particular relevância no
caso sintrense. Na verdade, ao longo do século XIX, várias foram as tentativas
de retratar, numa perspetiva histórica, a ambiência patrimonial de Sintra,
sobretudo depois da emblemática obra do Visconde de Juromenha, Cintra Pinturesca (1838). Um desses
casos, ao que julgo saber inédito, foi protagonizado por S. Borchado, autor, em
1866, de uma série de artigos publicados no periódico Gazeta do Campo, folha da classe dos pobres, conforme se intitula,
impressa em Mafra. Na referida série – sete artigos dados à estampa entre 21 de
janeiro e 1 de abril de 1866 – Borchado procura descrever todas as freguesias
de Sintra, de acordo com a seguinte estrutura sequencial: S. Martinho, Santa
Maria e S. Pedro de Penaferrim (quatro artigos); Colares (um artigo); Belas (um
artigo); freguesias rurais (um artigo). De modo evidente, a vila de Sintra
recebe a primazia, tanto mais que o “cronista”,
no que às freguesias rurais concerne, indica não querer cansar os leitores, uma
vez que não dispõe de “dados para
minuciosa descrição”.
Em oposição, as três freguesias da vila de Sintra são
descritas com algum pormenor, indiciando, tudo leva a crer, visita in loco. De resto, é de admitir que o
autor tenha alguma ligação afetiva com as localidades em causa (1). Por
exemplo, em relação a S. Martinho, o articulista revela inúmeros elementos da
toponímia, menciona as Quintas da Regaleira, dos Pisões e da Penha Verde, o
Palácio de Monserrate, a Fonte da Sabuga… Denota, inclusive, conhecimento da
ancestralidade de algumas instituições, conforme sucede com a Misericórdia e a
igreja de S. Miguel: Antes da fundação desta santa casa, que foi no governo da
Rainha D. Catarina, em cujo tempo se lhe anexaram os hospitais do Santo
Espírito e dos Gafos, já nesta vila existia a confraria de Santa Catarina,
instituída na Igreja de S. Miguel no ano de 1304 pelo beneficiado João Miguéis:
a igreja e todo o edifício não oferecem coisa alguma digna de notar-se, e a
enfermaria é na verdade acanhada. (Gazeta
do Campo, 21 de janeiro de 1866). Por outro lado, são muito curiosos os
apontamentos a respeito da arquitetura civil e religiosa. Nesse capítulo,
Borchado considera a sumptuosidade de Seteais, elogia o templo gótico de Santa
Maria e o Palácio de Queluz, menciona o Túmulo dos Dois Irmãos e a Ermida de
Santa Eufémia… Desvaloriza, porém, a igreja de S. Pedro de Penaferrim e, mesmo,
a paroquial de Colares, que denomina de “arquitetura
antiga e pobre”.
A sua visão histórica dos monumentos parece não se relacionar
apenas com a época em que estes foram erigidos e, consequentemente, com a
eventual preferência por um determinado período da história da arquitetura
(gótico, barroco…). De facto, o autor reclama uma certa ideia de “unidade de estilo”, ou seja, de fidelidade
à conceção original (patente nos comentários efetuados a propósito das igrejas
de Santa Maria e de S. Pedro de Penaferrim). Demonstra, ainda, bem ao jeito do
romantismo, um gosto pelos ambientes campestres e bucólicos, valorizando as “boas” e “belas” quintas de Meleças e de Colares, bem como o “pitoresco” sítio das Mercês, com a sua
ermida.
Com toda a distância crítica que a sua análise obriga, o
testemunho de S. Borchado constitui uma importante achega para o conhecimento
da história remota de Sintra. E, em meados de Oitocentos, é bem o exemplo da
progressiva afirmação da história local como um género próprio ao alcance de
estudiosos não-eruditos.
1.Creio, aliás,
tratar-se de António Joaquim de Sousa Borchado, que no início da década de 1850
era sócio da Assembleia Filarmónica de Sintra (cf. José Alfredo da Costa
Azevedo, Velharias de Sintra, 1980, vol. I).
Sem comentários:
Enviar um comentário