Frio! Deram-se conta logo que Ana abriu a porta da cozinha.
Sentira-se de repente, na véspera. E aguçara durante a
noite, com o vento. Mas não era de estranhar.
- Estamos no tempo
dele.
No fim do Outono.
Do outro lado da estrada principiara o desbaste dos
pinheiros.
Alguns acabariam em
árvores de Natal. Há ainda quem rejeite os abetos em plástico.
Um pinheiro ao canto da sala faz-se lembrar, espalhando o
cheiro da resina. Estala, de vez em quando. E tudo o que se lhe arme nos ramos
parecerá tão natural quanto as suas próprias pinhas.
Com Janeiro a marcar o fim da festa, desligam-se as luzes,
guardam-se os enfeites.
A árvore ensecada. Sacode-se-lhe a neve artificial,
aproveitam-se tronco e caruma para a lareira.
Ana voltou para dentro.
- Arrefeceu mesmo! É
melhor trocar o casaco ao menino...
Joaquim não se levantara da mesa. Escorreu o resto do café
para a caneca. Foi bebendo.
O filho à porta a acabar de comer.
Veio o Sax dando ao rabo, farejando. Queria a sua parte.
O rapaz riu-se e deixou-o abocanhar o resto do pão. Depois
lambeu os dedos, saboreando os vestígios de manteiga.
Dedos curtos. A palma da mão quase sem pregas.
Ana tornou à cozinha, trazendo um anorak.
- Será que ainda te
serve?... É o do ano passado.
Correndo o fecho, ficava apertado. A pele sintética, à volta
do capuz, acusava uso. Mas servia. E as mangas até continuavam compridas
demais. Dobrou-as.
- Tens a mãos
engorduradas...
Foi buscar uma toalha.
-...e a boca?
A língua a pender, entre os lábios. Meteu-lha para dentro.
- Vamos, Joaquim?...
Está na hora!
- Vai indo, com o
menino. Eu...
Tinha ainda coisas a fazer. Dar de comer aos coelhos,
apanhar os limões atirados ao chão pela ventania da noite. E espalhar granulado
na estufa, para evitar que as lesmas devastassem as alfaces.
-...vou lá ter, de
bicicleta.
Joaquim fora ajudante de farmácia.
Ana tivera vários
ofícios. Costura, limpezas, companhia. E finalmente, encarregada da copa num
café.
A farmácia e o café eram na mesma rua, num subúrbio de
Lisboa. Impossível não se cruzarem. Não terem reparado um no outro.
- Já não é um homem
nada novo... mas bem jeitoso!
- Deve ter mais de
quarenta... mas ainda é um pedaço de mulher!
De onde era ele?
Mata da Rainha.
E ela?
Marco da Serra.
Terras voltadas para o pinhal. De um lado o mar, do outro a
serra. Vinculadas, em tempos idos, à mesma comarca: Alcedas.
- Saí de lá com doze
anos.
- E eu, com quinze.
- Quem diria que
éramos de tão perto!...
- Somos...
E seria bom terem cuidado. Juízo. Nunca se sabe no que podem
dar as inclinações tardias.
Não deixaram, porém, de atravessar a rua sempre que tinham
ocasião. Pretexto. Ora por um café ora por uma carteira de aspirina.
- Ontem à noite,
quando já estava a arrumar tudo...
Ana cortara-se com a faca do presunto. Não havia meio do
sangue parar, e a água oxigenada acabara.
- Porque é que não me
ligou?...
Joaquim vivia num anexo da farmácia. Ana estava a par.
-...podia ter ido lá
tocar.
Acabou por ir.
- É melhor eu não
voltar cá, Joaquim...
- O que é que te deu,
Ana?... Parece-me que não te tenho faltado com nada!
- Não...
Ela é que ia já na terceira falta.
Joaquim pulou da cama. Um
filho, quase na idade de serem avós?!
Uma criança diferente. Souberam, logo que nasceu. E, desde
daí, modificou-se-lhes a vida.
Não se pense, no entanto, que o toleraram como uma
adversidade. Antes com um pressentimento de amor.
E amaram-no, não lhes importando porquê.
Teimavam em o alimentar, dar-lhe banho, vesti-lo. Corriam a
aquecer botijas-miniatura, se lhe arroxeavam os braços ou as pernas.
Veria? Ouviria? Seria capaz de caminhar? Fosse como fosse,
não o queriam perder.
Levaram-no a hospitais e a consultórios de especialistas.
Procuraram-lhe uma
clínica de reabilitação: muito cara. Uma escola especial: não conseguiram vaga.
Ana deixou de trabalhar no café.
Então, uma notícia ao acaso levou-os de volta ao pinhal:
abrira em Alcedas um “Instituto” para deficientes.
Informaram-se.
Ensino para uns, oficinas para outros. E acolhimento, para
quem a família faltasse.
Pagava-se?
Claro! Mas tanto podia ser em dinheiro, como em trabalho.
- Ainda tenho a casa
que era da minha avó, na Mata da Rainha...
-...vamos?
Joaquim pediu a reforma. Foram.
Havia dezasseis anos que ali estavam. Sim, dezasseis anos.
E ainda que Ana e Joaquim continuassem a dizer “o menino”, o
rapaz faria dezassete no Verão seguinte.
Passava das oito. O largo principal de Alcedas estava
deserto.
A camioneta parou. Era o fim do percurso, e toda a gente
desceu. Cada um foi para seu lado, à pressa.
Ana e o filho atravessaram o largo.
O Instituto ficava em frente, na Casa dos Condes. Paço da
Justiça, no tempo em que a Vila fora sede de comarca.
A descendência dos senhores de Alcedas deitara contas à sua
mansão.
Estivera muitos anos sem serventia. Duas filas de janelas,
uma de mansardas. Vidraças partidas, pombos nas sacadas. Metros e metros de
caleiras entupidas.
Uma fortuna, só para recuperar tudo aquilo!
E depois, pagar os
impostos? Manter o jardim, as paredes, os telhados?
Seria melhor doar,
para casa de assistência a pessoas diminuídas.
“Para asilo de tolinhos e paralíticos”, dizia-se. Na redondeza do
pinhal.
E quase todos lembravam as últimas gerações dos Condes, a
casar entre si. Primos com primas. A procriarem coxos e tarados.
E diziam mais:
Os Condes tinham posto no Instituto um administrador de fora
de Alcedas. Era um homem com poucos estudos e, além disso, de muito pouca
sabedoria.
Tinham-no ido buscar
porque era ainda parente deles.
Parente?!
Sim. Reparassem só na
filha: braço torto, perna a arrastar. A desgraça dela, apesar de muito bonita,
era vir de quem vinha. Por bastardia que fosse.
Todos tratavam o Administrador por “Dom”. “Dom Álvaro”. Ia-lhe melhor que “senhor”. Ele próprio concordava.
Ninguém no átrio.
Ana indecisa: ajudava
o rapaz a encaminhar-se, ou levava-o com ela? Àquela hora, já devia ter as
batatas descascadas, o panelão da sopa ao lume.
-...oito e meia!
Tinha ainda de ir ao vestiário mudar a roupa e apanhar o
cabelo.
- Anda, vem lá...
Mas o rapaz não queria ir. Falava do ensaio. Puxava-a para a
porta do salão.
Abriram.
Ninguém. Tudo às escuras, e frio. Muito frio.
De repente, ouviu-se:
O menino está dormindo,
nas palhinhas despidinho ...
O rapaz correu, levava a língua toda de fora. As vozes
vinham do refeitório. O ensaio era lá.
A festa de Natal.
Acontecia, na época devida, desde que o Instituto era
Instituto. Cânticos, representações, muitos doces. E um presépio vivo, que se
armava no salão.
- Os figurantes são
todos pupilos da Casa – orgulhava-se Dom Álvaro.
Logo no ano em que chegara, o rapaz fora Menino Jesus.
Depois, uma das crianças que apanhavam erva para dar à vaca e ao burrinho.
Tocador de pífaro, mais tarde.
Iria, agora fazer de moleiro. Aparecia de cara e roupa
polvilhadas de branco. Entrava e saía de uma azenha. Vinha uma moça buscar um
saquito de farinha, dizendo que era para oferecer ao Menino. Entregava-lho.
A moça engraçara com os modos dele. Com a linha dos olhos e
a boca sempre a deixar que a ponta da língua passasse.
E ele engraçou com ela. Sem lhe fazer diferença o entortar
do corpo ou o arrastar da perna.
Começaram a ficar juntos, depois dos ensaios. Dir-se-ia que
conversavam como conversam todos os rapazes e raparigas, naquela idade. Frases
incompletas, palavras sem consequência.
E uma tarde, sozinhos no quarto onde se guardavam os
adereços, ele beijou-a.
Ei-los apaixonados. Sem poderem desvendar o que é o amor,
nem admitir que os contrariassem. Como acontece a todos, quando se apaixonam.
E já ela estava à porta do refeitório. O saco vazio,
pendendo-lhe do braço.
Ele acenou um “até logo”, à mãe.
- Até logo, filho.
- O que aconteceu?!
Joaquim saltou da bicicleta e tentou levá-la à mão, até à
porta do Instituto.
O largo cheio de gente? Uma ambulância e a Guarda diante da
Casa dos Condes? Porquê?!
Chegou-se a um conhecido e perguntou se tinha havido algum
acidente.
- Não sei... talvez...
- Se houve, tenho de
lá ir...
Joaquim mantinha o posto de socorros do Instituto. A caixa
das compressas, a das ligaduras, um armário com remédios. E a experiência de
ter trabalhado, quase quarenta anos, numa farmácia.
Foi rompendo, até ao Jeep da Guarda.
Muitos tons de voz, à sua volta. Todos a repetir o nome de
Dom Álvaro.
O cabo da Guarda, também seu conhecido, disse-lhe que não
podia passar.
- Que diabo!... A
minha mulher e o meu filho estão lá dentro!
- Mas também lá estão
as autoridades...
Que autoridades? Porquê? E a ambulância?
Silêncio. Um estranho silêncio.
“A entrada pelo quintal!...”, lembrou-se.
Portão em madeira, de um só batente. Deixavam-no quase
sempre no trinco.
Deu a volta à Casa, empurrando a bicicleta.
Sim, estava aberto.
Correu até à cozinha.
- ANA!... ANA!...
Não estava ninguém.
Foi pelos corredores.
As portas todas abertas, salas e
gabinetes vazios, coisas atiradas para o chão.
Era como se todos se
tivessem precipitado porque alguém gritava. Gritos terríveis.
Acabou por esbarrar
com um maqueiro.
Embora não o conhecesse, perguntou o que era aquilo. O que
se passara, afinal?
- O Dom Álvaro foi dar
aí com um miúdo em cima da filha... ela com as saias para cima, ele sem
calças...
- E o que é que ele
fez?!... Bateu-lhes?...
Puxara de uma navalha que trazia sempre consigo, e capara o
rapaz.
Deixara-o a esvair-se, enquanto arrastava a filha para o seu
gabinete.
Berrava-lhe: “Desavergonhados! Ele já está, e agora tu...”
Entretanto, alguém chamara a ambulância, e a Guarda.
- Mas quando a gente
cá chegou...
O rapaz já estava morto.
- Parece que era filho
aí de uma das cozinheiras... e o pai...
O Capitão da Guarda dera logo voz de prisão ao
Administrador. Mas ainda perguntara:
- Afinal o que alega,
senhor Dom Álvaro?... Porque é que deu cabo do rapaz?!
- Não ia deixar que
eles ficassem ali, a fazer aquilo... Pois não?
Consentir que lhes viesse um filho ainda mais atrasado de
juízo que ele? E mais aleijado que ela?
Joaquim deixou-se escorregar até ao chão. Não chorava.
Gritava:
- Estúpido!... Estúpido!...
Mais que estúpido.
- Ignorante!
Dom Álvaro nem sequer
sabia que todos os portadores de trissomia-21 são estéreis.
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