FERNANDO MORAIS GOMES
“A coragem não é a
ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que
não sente medo, mas o que conquista esse medo" Frase de Nelson Mandela, já
ouviu falar ao menos senhor guarda? –explicou o Saraiva a um atávico
polícia de bigode, ao ser libertado da prisão onde passara a noite com colegas, após um protesto contra a troika.
Manifestando-se irados, haviam sido removidos depois dum protesto frente à
Assembleia, a força ganha com o engrossar de apoiantes levara-os a atear
fogueiras, ameaçando dali não sair. O velho Saraiva, professor de Desenho, à
volta dos sessenta, e mandado para a mobilidade, era o mais enérgico, nos anos
setenta activo contra a repressão e agora contra a destruição das carreiras.
Parando para o pequeno-almoço num café, a recuperar da noite no calabouço,
retomaram a diatribe contra o poder, esse velho e familiar inimigo, comiciando
entre meias de leite e cafés duplos:
-Um homem não deve
desistir da sua consciência nem um único instante, pois senão para que é que
ela serve? Devemos ser homens, nunca súbditos, amigos! Não podemos meter o
respeito pela lei ao mesmo nível do respeito pelos direitos. A única obrigação
que temos, é fazer a qualquer momento aquilo que julgamos certo. Costumava-se
dizer que uma corporação só por si não tem consciência, mas uma corporação de
homens conscienciosos já passa a ser uma corporação com consciência! –arengou o Saraiva, dando uma passa
no cigarro. O Bruno, professor de História, foi desfiando, também:
- Sabem, enquanto
estive naquela espelunca, fui observando as paredes e as grades, e não pude
deixar de perceber a idiotice de uma instituição que nos trata como carne e
osso apenas. Eles têm uma muralha mais difícil de vencer antes de conseguirem
ser tão livres quanto nós - as nossas consciências! Nem por um momento me senti
preso, sabem, as paredes são um desperdício. Não há paredes que confinem a
força indomável dum homem livre!O Nelson Mandela é a irrefutável prova disso!
No escaparate dum quiosque em frente, políticos domésticos
peroravam sobre a obra de Madiba. O Telmo, de Matemática, orgulhoso por ter
sido preso, teve uma tirada que a todos agradou:
-“Anima-te por teres de
suportar as injustiças; a verdadeira desgraça consiste em cometê-las.",
dizia o Pitágoras. E maior violência não haverá que a violência das amarras, de
fazer dos homens servos, da opinião rebeldia, ou da diferença ofensa? Onde está
a democracia? Somos homens ou somos escravos?
-Meu caro, a democracia
é algo que se tem de refundar todos os dias. Porque sendo a tentação do poder o
seu maior inimigo, impõe-se mantê-la montando guarda às consciências, e tendo
sempre como fronteira estreita a ignomínia que leva à perda da dignidade, e com
ela da humanidade!
-Abel falava como um tribuno, relembrando as épicas RGA’s da sua juventude, de
novo rebelde com uma causa e vendo a história repetir-se, não como farsa, como
o velho Marx profetizara, mas perigosamente como tragédia.
Nessa manhã, os trilhos da liberdade apareciam aos velhos compagnons de route cheios de escolhos,
emboscados pelo assalto aos direitos, lançando a violência e esperando a
mansidão do rebanho como resposta. O Portugal de 2013 era outro, mais
individualista, na penumbra da net ou do Facebook, do cada um por si e para si.
A Abel e aos amigos, mais que a afronta aos direitos, chocava a flacidez da
resistência e a anemia de viver, um viver fatalista, vendo os jovens buscando
futuro noutros lados, melancólicos conjugando o verbo partir. E o drama é que
sabiam que não seria um golpe militar ou a simples convocação dos Abris
adormecidos que fariam a diferença, desta vez. A ele e aos amigos, contaminados
pela estirpe da resistência, adormecida mas alojada ainda, a disposição para a
luta poderia ainda despertar os genes da esperança, guardados no cofre do
idealismo, mas e aos outros? E a anomia perante as injustiças, a indiferença
perante os direitos, a submissão perante os grilhões?
Com a roupa desalinhada, deambularam pelas ruas, levas de
turistas e funcionários públicos caminhavam já pela cidade que acordava,
solitária e povoada de caras consumidas, almas penadas dum Portugal de chumbo.
Como esperançosamente lhes haviam vendido o futuro como um mundo tecnológico,
com cápsulas espaciais e teletransporte, vida eterna e sem doenças, o admirável
mundo novo de Huxley e do Star Treck,
e como ironicamente se sobrevivia hoje sobre as ruínas da sociedade da
abundância, no dealbar de novas pobrezas, injustas, desiguais, em nova
pré-história da fraternidade e do sonho.
No Rossio, e com cara de poucos amigos, elementos do Corpo de
Intervenção buscavam acampados da noite, insurrectos do megafone. Olhando de
soslaio, os professores sem escola e órfãos de alunos, seguiram cabisbaixos e
cansados, interiormente contentes, apesar de tudo. Não tinham salvo o mundo, as
suas consciências salvariam ao menos. Já na Praça da Figueira, e passando o 28
para a Graça, Abel fez sinal aos amigos, acelerando o passo:
-Despachem-se,
companheiros! Com sorte ainda o apanhamos!
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