Como de costume Baltasar, Gaspar e
Melchior, sócios na ourivesaria e solteirões inveterados, passaram o Natal
juntos, à meia-noite trocaram presentes e comeram bolo-rei, agora sem brinde e
sem piada, comentava o Gaspar. Baltasar era o mais velho e gerente da loja,
muitas alianças para casamentos vendidas mas nunca a dele, a olho nu distinguia
um fio de ouro de um pechisbeque com banho dourado.Com Gaspar iniciara o
negócio há oito anos, chegaram a correr o país em feiras e mercados antes de
finalmente se estabelecerem numa zona elegante, até hoje sem um assalto,
felizmente. Melchior retornara de África com a descolonização, mestiço,
conheceram-se num cruzeiro à Turquia e acabaram partilhando o negócio e a casa
no Banzão.
Na véspera de Natal tinha havido
movimento na loja, apesar da crise, uns brincos, quatro relógios, uma salva em
prata, dava para ir mexendo. Pela manhã de 25 de Dezembro coube a Melchior
despejar o lixo, caixas e restos dos camarões da ceia, bacalhau não era
tradição. Tinham uma empregada duas vezes por semana, a Maria, que por ser
feriado estava de folga, eles mesmo acomodavam o essencial. Para espairecer,
iriam almoçar à Ericeira, apesar do tempo frio, daria para desentorpecer as
pernas.
Já Melchior voltava para casa
quando ouviu um restolhar junto ao contentor, algum cão buscando sobras,
pensou. Curioso, aproximou-se, uma alcofa de estopa atada com um fio de nylon estava depositada mesmo ao lado e
parecia conter algo, agitava-se ligeiramente. Espreitando de soslaio,
assombrado, deparou-se-lhe um bebé ainda com sangue no corpo, não teria mais
que umas horas de vida, ali abandonado na manhã do dia de Natal. Olhou em
redor, ainda atónito, tentando descortinar alguém na redondeza, algum carro,
quem poderia ter cometido uma barbaridade daquelas, e com o receio de quem
nunca pegou num recém-nascido, agasalhou-o com o casaco de lã que levava e
correu para casa.
Baltasar barbeava-se, enquanto
Gaspar ia fazendo zapping, todos os
canais na bênção do Papa, o passo assolapado de Melchior com um volume nos
braços assustou-os.
-Depressa! Vejam só o que estava no lixo! Não há direito! -exibiu
Melchior o ensanguentado nascituro, um rapaz, segundo reparou logo. Baltasar e
Gaspar correram atarantados, Baltasar ainda com o creme da barba, o pequeno
dormitava, inocente e já órfão, porém.
-Tem de se avisar a polícia. Mas esperem, vamos dar-lhe banho primeiro
-aventou Gaspar, correndo a buscar um alguidar com água quente.
-E comida? Há algum biberão?
-Melchior, mete-te no carro e vê qual a farmácia de serviço. Traz
fraldas e um biberão. Ah e pergunta o que é que se dá de comer nestas idades!
-logo destinou Baltazar, ourives baby-sitter,
sem experiência de crianças.
O bebé acordou, entretanto,
desfazendo-se num pranto. Enquanto Melchior não voltava, vinte minutos que mais
pareciam vinte horas, foram-lhe deitando leite morno nos lábios que ele logo
sugou, instintivo. Regressado Melchior, dividiram as tarefas daquela incrível
manhã de Natal, uma hora depois dormitava na cama do Baltazar, protegido por
almofadas dos lados para não cair, com o trio embevecido com algo que só viam
nos filmes.
Maria chegou, entretanto, apesar
do feriado passava a ver se era preciso alguma coisa. Vinte e dois anos,
separada do Zé Luís, entretanto despedido do Ikea, ficou abismada com a
história e logo ficou a tomar conta do pequeno anjo. Ela própria fizera
recentemente por um aborto involuntário e agora, ali estava um presente de
Natal, naquela radiante manhã de vida no improvável presépio do Banzão. Chegada
a polícia, foram todos para a GNR de Colares, onde dois guardas de serviço
colocaram a cesta na secretária, junto a uma árvore de Natal, na televisão um
coro cantava o Adeste Fidelis.
Seguiria para uma instituição de acolhimento, mas Maria e os outros quiseram
seguir o caso, se ninguém o quisesse, estavam interessados em criá-lo, Gaspar,
crente, associava o acontecimento a mais que uma coincidência.
Reluzindo, com o reflexo das
luzes de Natal no rosto minúsculo, o pequeno a quem alguma mãe sem meios
abandonara, parecia sorrir na alcofa, com todos a mirá-lo, silenciosos, mas com
um coração grande.
No rio de Colares, duas pombas
brancas esvoaçavam soltas e livres, chaminés fumegantes anunciavam o lento
acordar da manhã de Natal, a vida renovava-se e o que por certo seria o um
drama de mais uma vida madrasta, foi o prenúncio de um novo começo na vida
sempre a recomeçar.
-Há-de chamar-se Salvador! -profetizou Maria, uma lágrima no olho
adoçou-lhe o sorriso cheio, se tudo corresse bem, veria a maternidade
reencontrada e três tios emprestados, para o que desse e viesse.
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