A farmácia ficou de
serviço na noite de fim de ano, a Mafalda asseguraria o expediente. O comboio
para Sintra estava a chegar e Eduardo só pensava em chegar a casa, onde Sónia
esperava com o champanhe e as passas.
Cinco anos numa
farmácia no Cacém, de tudo vira já, a farmácia era um espelho: os unguentos para
o reumático da D.Marinela, sempre a aviar receitas e reclamando das artroses,
os Gurosan para a fauna da noite, malandreca e ressacada, o antibiótico do
Gonçalo, pai desempregado e mãe a dias num infantário, comparticipação pequena.
O pior, eram as noites, o Cacém cada vez mais perigoso, perdido entre seringas,
nada como uma farmácia para perceber a crise.
Levou para casa a mala
com amostras que o Faustino, delegado de informação médica, lhe deixara, no dia seguinte,
feriado, entreter-se-ia a folhear a literatura, os laboratórios estavam sempre
a inventar produtos, todos fazendo o mesmo efeito, a indústria precisava de ser
oleada e criar produtos novos, vira o que sucedera com a gripe A.
A viagem seria de dez
minutos, já pouca gente ia no comboio, mais a caminho das docas e do Terreiro
do Paço, animados para a festa, que a crise pode esperar. Na carruagem, quatro
ou cinco passageiros, apenas, um careca amorfo, com o olhar baço reflectido no
vidro grafitado, duas brasileiras de roupa exuberante a caminho do trabalho,
pelo cheiro do perfume barato, um jovem de óculos com um portátil, falando com
amigos no Messenger. A carruagem
seguia silenciosa, intervalada pela voz melosa indicando a paragem seguinte,
soava doce a palavra Algueirão naquela voz de aeroporto, quem não conhecesse
poderia pensar estar em Paris ou Barcelona.
Em Rio de Mouro saiu o
careca, levando uma maleta, a marmita do almoço por certo, a passagem de ano
seria a dormir, sem disposição para festejos, mais um ano na vidinha que não
vai mas vai indo. Da carruagem contígua, chegaram quatro jovens africanos, com piercings reluzentes como árvore de
Natal, boné da NBA e ténis reflectores. Depois de ruidosos pontapés nas
cadeiras, marcando o território, e do abrir e fechar de portas, invasivas e
invasoras, um, com as calças quase pelos joelhos, aproximou-se de Jorge e
apontou-lhe uma faca à jugular:
-Meu,
passa para cá o caroço, e depressa! E não te chibes, que ainda é pior!
Eduardo sentiu a lâmina
fria na garganta, as brasileiras, surpresas, nada disseram, que nestas coisas o
melhor é ficar de fora, indocumentadas por certo. Buscou no bolso das calças a
carteira com trinta euros, o cartão multibanco e cartões de visita de delegados
de informação médica.
-Só
isto, sócio? Então hoje não há festa? -pelos vistos teriam de
ir abordar o caixa de óculos, que fazia não ser nada com ele. Eduardo achou
melhor ficar calado. Eram quatro, um sacou os trinta euros enquanto o da faca o
manteve quieto, não fosse pegar no telemóvel e chamar a polícia, depressa
desapareceriam na noite a beber cervejas e enrolar um charro. Junto à porta, um
dos sócios, para aí com dezoito anos, empalideceu e caiu desamparado no chão da carruagem. Surpreendidos, os outros começaram a desatinar:
-Levanta-te chavalo, estás bezano, meu? -sacudiram-no como baratas
tontas, sem saber o que fazer. As brasileiras entreolhavam-se, parecia coisa do
morro.
-O minino bébeu? Nossa, que barra pesada! -comentou uma, sem se
levantar, um decote de passagem de ano deixava descobertos os peitos rijos e
salientes. Eduardo virou-se para o seu sequestrador e interpelou-o:
-Oiçam,
eu sou farmacêutico, percebo um pouco destas coisas, deixem-me tirar-lhe a
pulsação -sugeriu, apesar da situação, era um profissional.
O da faca, com um capuz
enfiado, hesitou, mas anuiu, desviando a lâmina, o rapaz do computador
aproveitando a trégua inesperada, chegou-se, curioso, enquanto o Algueirão
ficava para trás sem ninguém ter saído, Eduardo colocou o aparelho no braço do
jovem:
-É
quebra de tensão. Oiçam, trago aqui amostras duns comprimidos novos que
estimulam o organismo, isto deve ajudar -diagnosticou, abrindo
a mala das amostras que levava para ler no feriado. Abrindo-lhe a boca, ante a
passividade dos amigos, enfiou-lhe uma cápsula branca, e cinco minutos depois,
sentado num banco da carruagem já o jovem, Vando de nome, recuperava,
com dor de cabeça e ar assustado.
-O
melhor é fazeres umas análises, pode ser algo do coração, ainda és novo, puto! -recomendou
Eduardo, apesar de assaltado não resistiu a pôr a mão no ombro do rapaz,
complacente com aquelas vidas perdidas talvez nunca
programadas para ser de outra forma. Acabrunhado, Vando nada disse, os outros
em silêncio rodeavam. O da navalha olhou Eduardo nos olhos e com um ar
fechado e inexpressivo estendeu-lhe a mão onde ainda tinha os trinta euros do
assalto. Eduardo olhou-os de relance, e sem aceitar, despediu-se, conformado:
-Bebam
um copo à minha saúde! Bom ano!
E saiu na Portela de
Sintra, as brasileiras também, entrando num carro que as esperava, também o
moço do computador sumiu na noite fria. Em breve seria um novo ano, também no
cúmplice comboio de rejeições. Os quatro sócios
seguiram para a vila, deambulando junto ao paço, com o Vando mais
descontraído. Metendo a mão ao bolso, encontrou a caixa dos comprimidos, e na
frente, escrito a azul um “Bom Ano Novo”
em letras grandes.
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