António Feliciano de Castilho (1800-1875), poeta, jornalista,
tradutor e pedagogo, foi autor de vasta e diversificada obra escrita. Das
facetas enunciadas, merece-nos particular atenção a última, particularmente por
ser através dessa condição que vislumbramos um Castilho mais preocupado com a
emancipação dos seus cidadãos; se quisermos, com a criação de um certo “espírito coletivo”. É nesse âmbito que
se situa a carta anunciada em epígrafe. Todavia, antes de a abordarmos,
impõem-se algumas considerações em ordem a contextualizar o seu conteúdo.
Em 1848, quando reside nos Açores, na ilha de S. Miguel,
António Feliciano de Castilho, que até então não se interessara diretamente por
assuntos relativos à instrução pública, toma contacto, através de um amigo francês,
com o método de aprendizagem de leitura de Lemare. Na sede da Sociedade dos
Amigos das Letras e Artes, em Ponta Delgada, Castilho abre três escolas
primárias, nelas promovendo um “novo”
método de ensino da leitura, exatamente resultante do seu trabalho (nem sempre
feliz) de adaptação do método de Lemare.
Regressado ao continente, abraça uma tenaz campanha de
difusão do método em questão, verdadeiramente iniciada em 1850, quando publica
a 1.ª edição da cartilha Leitura Repentina; obra que conhecerá posteriores
edições (2.ª e 3.ª em 1853, 4.ª em 1857), diga-se com poucas mudanças de
conteúdo, sendo nas duas últimas intitulada Método Português de Castilho.
Durante os primeiros anos da citada década, Castilho
desdobra-se em contatos com entidades governamentais, promove cursos noturnos e
diurnos, cria aulas de “primeiras
letras”… perseguindo, no fundo, um desiderato muito próprio: a imposição
exclusiva do método de “leitura
repentina” nas escolas primárias do país. No entanto, o método não colhe a
aceitação que o seu autor esperava, sendo que, como resposta do governo, obtém
apenas, em 1853, a atribuição do cargo de comissário geral de instrução
primária pelo método português no reino e ilhas. Ora, após essa data, seria de
esperar que as condições fossem favoráveis à disseminação do método. Porém, por
paradoxal que possa parecer, é a partir desse momento que Castilho sofre
críticas mais contundentes por parte dos seus opositores, centradas na
imposição exclusiva do método, pouco consentânea com o ideário liberal, sem
esquecer argumentos vários de natureza pedagógica.
Até 1854, ano em que o poeta-pedagogo leciona vários cursos
dirigidos a professores do ensino primário (em Lisboa, Leiria, Coimbra e
Porto), o mencionado clima de hostilidade cresce de tom. Um ano depois,
certamente desiludido, mas sem nunca abandonar a luta, Castilho parte para
Terras de Vera Cruz; estadia que demoraria cerca de seis meses, abnegadamente
passados na promoção do método de leitura.
A partir de 1856, António Feliciano de Castilho modifica a
sua ação pedagógica, passando a pugnar, em termos mais abrangentes, pela
generalização de ensino popular; para o efeito, faz inúmeras concessões ao
valor e à originalidade do “método
português”, como fica, de resto, expresso no prólogo da 4.ª edição.
Traçado este quadro, centremo-nos agora na carta que Castilho
endereçou a D. Fernando II, corria o dia 13 de outubro de 1855[1]. O autor da
missiva começa por referir que já solicitara ao “Rei-Artista” uma visita às escolas onde se praticava o “método português”. Porém, segundo faz
saber, tal não sucedera por negócios e afazeres do monarca, numa altura em que
este tinha por dever a regência do reino[2]. Agora, que, como relata, o rei se
afastara da “espinhosa gerência das
coisas públicas ao remanso dos seus amados estudos, e à plena fruição dos seus
gostos artísticos e filosóficos”, era o momento ideal para a renovação do
primeiro pedido. É nesse sentido que solicita a D. Fernando II “o seu exame e juízo como de sábio, e a sua
proteção efetiva como de rei”. No entanto, revela ignorar se o monarca
conhece o “método português”, ou
mesmo se lhe chegara alguma informação negativa a tal respeito; é que, do seu
ponto de vista, “todas as inovações
contam inimigos”.
Não obstante alguma reserva, o comissário geral de instrução
primária pelo método português mostra-se esperançado, advogando a ideia de que
se o rei tiver “assistido duas ou três
horas aos trabalhos de uma destas classes, terá colhido convicção, para toda a
vida, que a qualquer luz que se considere o novo ensino, as suas vantagens
sobre o antigo são incontestáveis”. Castilho sugere depois a D. Fernando II
a fundação e a proteção de duas escolas do sexo feminino para as camadas
desvalidas da sociedade. Uma das escolas, como indica, situar-se-ia em Lisboa,
“às abas do Paço”, e teria como
protetoras as filhas do monarca. Em relação à outra escola, o apelo é mais
veemente e direto ao rei: “V. M. mesmo,
na sua Sintra, já tão favorecida, tão aformosentada, e tão célebre, pelo seu
coração, pelo seu gosto, pela sua inata e ilustrada generosidade, poderia
coroar tantos benefícios […] com a fundação e manutenção de uma escolazinha
aldeã”. O autor da missiva discorre depois, em jeito poético, sobre as
vantagens de uma escola em Sintra: “Os
viajantes que fossem, já no próximo Verão, procurar as belezas e as inspirações
de esse país, tão arcádio, e tão romântico ao mesmo tempo, folgariam de ouvir
nos cânticos dessas vozes ingénuas, as ações de graças à providência terrestre”.
Todavia, Castilho, que em 1841 fizera o elogio do “Rei-Artista” (o cognome é, aliás, de sua autoria) nas páginas da
Revista Universal, vai um pouco mais longe. Na verdade, estabelece um paralelo
entre o espírito do monarca – que “deu um
culto ao passado, restaurando ruínas históricas e estendendo mão régia ao régio
castelo mouro que se aluía” (como que resgatando, segundo se infere, as
raízes da nacionalidade) – e os tempos que adviriam, aos quais a escola daria
um contributo decisivo para a “edificação
dos futuros nacionais”.
Apresentados os argumentos essenciais para captar a atenção
de D. Fernando II, António Feliciano de Castilho passa a nomear as escolas de
Lisboa que, pela proficiência com que nelas se aplicava o método, deveriam ser
visitadas; cita, para o efeito, os Asilos de Infância Desvalida da rua dos
Calafates e da rua da Junqueira, as escolas oficiais das freguesias das Mercês
e da Lapa e, entre as privadas, o Colégio Artístico (à Estrela) e a do Menino
Jesus dos Atribulados (a S. Roque).
Mas por que não era suficiente exaltar as virtudes do “ensino novo”, o autor do método traça um
quadro negro da generalidade das escolas primárias do país. E, sendo certo que
as grandes obras precisam de timoneiro, Castilho coloca-se à disposição de D.
Fernando II para organizar os dois “futuros
hospícios da inocência”.
Desconhecemos de que forma o “Rei-Artista” reagiu à referenciada carta. Sabemos, porém, que os
projetos propostos não vingaram. Todavia, se a ação pedagógica de António
Feliciano de Castilho pode parecer algo utópica, não podemos olvidar que, à
época, representou um verdadeiro apostolado da causa da instrução pública. Como
metaforizou Tomás Ribeiro, Castilho entrou “só
pelas aldeias e cidades, a proclamar, a oferecer, a semear a mãos largas a luz
para todos, o luminoso amor para os deserdados; porque ele era como o sol, que
também não vê, e alumia”.
[1] A carta em questão, que constitui “o
quarto brado de Aqui-D ‘El-Rei em favor da escola primária”, foi publicada no
volume Correspondência Pedagógica. António Feliciano de Castilho, Lisboa,
Instituto Gulbenkian de Ciência, 1975, pp. 104-107.
[2] D. Fernando II foi
regente do reino entre 15 de novembro de 1853 e 16 de setembro de 1855.
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